Por Dora Incontri
A posição de Kardec ainda não foi compreendida pela maioria e uma das
provas disto está no debate ainda atual se o espiritismo é ou não é religião.
Por um lado, estão os que se autodenominam espíritas laicos e que defendem a
idéia de que Kardec jamais pensou o espiritismo como religião, mas apenas como
ciência, filosofia e moral; do outro, estão os que defendem o chamado tríplice
aspecto do espiritismo, ciência, filosofia e religião, mas agem e pensam como
se o espiritismo fosse apenas mais uma religião. Estes constituem a maioria do
movimento espírita brasileiro.
Analisemos a polêmica com cuidado, porque os dois lados têm suas
razões e os dois lados cometem enganos. De fato, Kardec não quis estabelecer
mais uma religião, no sentido comum do termo, (por isso, diz muitas vezes que o
espiritismo não é religião), visto que o espiritismo não tem sacerdócio,
templos, hierarquia institucional, dogmas de fé e nem rituais que o adepto deva
seguir para dizer-se espírita. Qualquer pessoa que aceite os postulados
espíritas e procure viver segundo a moral de Jesus pode se dizer espírita,
mesmo que jamais tenha pisado num centro espírita ou assistido a uma reunião.
Trata-se de uma convicção pessoal, de uma adesão livre, de que ninguém está instituído para pedir satisfações
ou exigir o cumprimento disto ou daquilo.
Nesse sentido, portanto, quando os espíritas laicos dizem que o
espiritismo não é religião, estão certos. Mas seria melhor dizer: não é mais uma religião, nos moldes das
religiões tradicionais.
Se Kardec promoveu esse desencantamento, essa crítica e esse
esvaziamento hierárquico do universo religioso, guardou aquilo que lhe é
essencial. O Livro dos Espíritos
declara como a primeira das leis morais a lei de adoração a Deus. Essa adoração
pode se manifestar no homem em forma de estudo das leis da natureza – portanto a
ciência, como Kepler, Giordano Bruno, Newton e outros afirmaram, pode ser uma
espécie de culto a Deus; e em forma de prática de amor ao próximo, na vida
social, e, também e sobretudo, em forma de oração, de ligação afetiva do ser
humano com a divindade. Ora, o amor ao próximo é a essência ética da maioria
das religiões e a oração é um ato indubitavelmente religioso. Não há outra
classificação para esse ato universal, por mais que o tornemos simples,
espiritualizado, sem ritos, imagens, intermediações, templos, genuflexões ou
gestos...
Além disso, é das religiões que nos vêm as experiências milenares de
contato com a divindade, de manifestações mediúnicas e de revelações morais –
grandes espíritos reencarnaram no seio das mais variadas religiões do planeta e
exemplificaram uma ética elevada a partir da vivência religiosa. Assim, a
religião é uma forma de ser e estar no mundo que não podemos simplesmente
deixar de lado, porque constitui parte integrante da nossa consciência.
Descendemos da divindade e foram as religiões que revelaram isso.
Portanto, falar em espiritismo laico – o que significa dizer um
espiritismo destituído de qualquer ligação com o assunto religião – é um contrassenso
e uma negação da obra de Kardec.
O laicismo nasceu no Ocidente como forma de protesto contra o domínio
milenar da Igreja católica. Fala-se em escola laica, em Estado laico, como
lugares institucionais que se consideram neutros do ponto de vista religioso e
fora da tutela da Igreja. O espiritismo não é neutro em termos religiosos.
Kardec critica, reavalia e recria a religiosidade humana, inaugurando uma nova
forma de ser religioso, sem jamais negar essa dimensão do homem.
INCONTRI, Dora. PARA ENTENDER ALLAN KARDEC, ed. Lachátre, Bragança
Paulista/SP, 1ª edição, 2004.