sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Kardec e a Revolução do Espírito

Quando o professor Rivail participou, em maio de 1855, da primeira sessão de “mesas falantes”, sua vida modificou-se totalmente. Ele vislumbrou, no vaivém do bater dos pés da mesa, algo mais do que os outros imaginavam.
 
Ali estava, naquelas manifestações rústicas, o caminho para um melhor entendimento dos problemas do homem. Sua mente treinada surpreendeu-se com o desdobramento possível da confirmação de que aqueles fenômenos indicavam a prova da imortalidade da alma. O sonho de todos, de não morrer, de continuar vivendo, se transformava em realidade.
 
“Compreendi, antes de tudo, a gravidade da exploração que ia empreender; percebi, naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da Humanidade, a solução que eu procurara em toda a minha vida. Era, em suma, toda uma revolução nas ideias e nas crenças”, escreveu, relembrando sua iniciação no processo que redundou no Espiritismo. (“Obras Póstumas” - Minha Primeira Iniciação no Espiritismo).
 
A Revolução Francesa derrubara os muros da aristocracia e da prepotência do clero, dando início a uma nova etapa, abrindo novos horizontes políticos para a sociedade. A Revolução Industrial estabelecera um novo primado para a economia e promovera a urbanização, reestruturando o panorama das relações humanas, projetando o crescimento da produção com vistas à expansão da coletividade humana. Marx e Engels, no “Manifesto Comunista”, em l848, proclamavam que “tudo o que é sólido se desmancha no ar...”, prenunciando a Revolução Social, com a promessa de eliminar as barreiras entre as classes sociais, instalando um panorama de justiça e cooperação.
 
Faltava a Revolução do Espírito, isto é, a quebra das barreiras materialista e confessional, libertando Deus, o universo, o ser, das algemas do dogmatismo e da ignorância, coroando as demais revoluções pela compreensão da natureza espiritual das criaturas humanas, ensejando o descortino de uma nova moral para o mundo.
 
PREPARANDO A REVOLUÇÃO
 
Para o professor Rivail, o Espiritismo seria o secundador, o desencadeador, o fator central dessa revolução. Podemos dizer que, desde o início, ele trabalhou para que a Doutrina chegasse ao ponto que depois ele indicou como a sua meta final: a influenciação social.
 
Passou a estruturar a nova doutrina, que os Espíritos patrocinavam com suas manifestações mediúnicas, discutindo ideias e fazendo revelações que davam novo sentido às crenças humanas.
 
Metodicamente, organizou suas ideias, conferiu posições, debateu, discutiu cada uma delas, dentro de um estrito sentido de responsabilidade. “Fazia-se mister, portanto, andar com a maior circunspeção e não levianamente; ser positivista e não idealista, para não me deixar iludir”.
 
 
Assim, afirmou: “apliquei a essa nova ciência, como o fizera até então, o método experimental; nunca elaborei teorias preconcebidas; observava cuidadosamente, comparava, deduzia consequências; dos efeitos procurava remontar às causas, por dedução e pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo por válida uma explicação, senão quando resolvia todas as dificuldades da questão. Foi assim que procedi sempre em meus trabalhos anteriores, desde a idade de 15 a 16 anos. (“Obras Póstumas” - Minha primeira iniciação no Espiritismo).
 
Em menos de dois anos, o professor Rivail transformou-se em Allan Kardec. Já em 1856 ele tinha concluído a formatação de “O Livro dos Espíritos”, após ter analisado exaustivamente cerca de 50 cadernos contendo mensagens, informações e respostas dos Espíritos a questões formuladas pelo grupo mediúnico de Victorien Sardou. Em mensagem datada de 11 de setembro de 1856, através da médium senhorita Baudin, “muitos Espíritos”, depois de ouvirem Kardec ler alguns capítulos de “O Livro dos Espíritos”, afirmaram que “o plano está bem concebido” e que estavam “satisfeitos” com ele. (“Obras Póstumas”).
 
Finalmente, o Espiritismo veio à luz no dia 18 de abril de 1857, com a publicação do primeiro “O Livro dos Espíritos”, elaborado por Rivail em mais ou menos 15 meses, motivo porque saiu com apenas 504 questões, contendo perguntas e respostas e o mesmo conteúdo no formato de texto filosófico.
 
Se considerarmos o período de maio de 1855 a março de 1869, quando ele desencarnou, Allan Kardec presidiu a estruturação do Espiritismo por cerca de 14 anos.
 
Em janeiro de 1858 começou a publicação da “Revista Espírita”, que dirigiu durante 11 anos e 4 meses, com 136 edições mensais, considerando que, embora desencarnado em 31 de março, deixara pronta a edição de abril de 1869. Em abril de 1858, fundou a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que presidiu até desencarnar.
 
TRABALHO SOLITÁRIO
 
Quando Camille Flammarion afirmou no seu discurso à beira do túmulo de Kardec “que ele não era o que chamam de sábio, que não fora primeiro físico, naturalista, ou astrônomo e que preferira constituir um corpo de doutrina moral, antes de haver submetido à discussão científica a realidade e a natureza dos fenômenos”, exprimia uma opinião que o fundador do Espiritismo conhecera.
 
O próprio Flammarion diz que Kardec “suscitou rivalidades; fez escola de feição um pouco pessoal” mostrando que ele fora taxado de personalista. Na verdade, realizou, de fato, um trabalho solitário.
 
Ele justificou essa atitude, dizendo que como a Doutrina não foi dada, em parte alguma, completa, era preciso um centro organizador para receber, discernir, deduzir e decidir o que deveria ser publicado e dado como doutrina espírita. O trecho seguinte mostra o que ele realizou: “O Espiritismo não é nem uma concepção pessoal, nem o resultado de um sistema preconcebido. É a resultante de milhares de observações feitas em todas as partes do globo, que convergiram para um centro que as coligiu e coordenou. Todos os princípios que o constituem, sem exceção, foram deduzidos da experiência.” (“Obras Póstumas”, Breve Resposta aos Detratores do Espiritismo).
 
Sobre sua decisão de organizar, fundar o Espiritismo, ele declarou: “Algumas pessoas disseram que fui precipitado nas teorias espíritas, que ainda não era tempo de estabelecê-las, pois as observações não estavam completas. Abstração feita ao ensino dos Espíritos, pergunto se, em meu nome, não tenho, como qualquer outra pessoa, o direito de elucubrar um sistema filosófico? Seria tomar a dianteira de certas pessoas? (...) Mas, se certo ou errado, eu creio tê-los observado suficientemente, devo esperar as boas disposições dos que ficam para trás?” (“Revista Espírita”, julho de 1859).
 
Em nota a uma comunicação datada de 18 de novembro de 1857, através da médium Ermance Dufaux, que versava sobre o lançamento da “Revista Espírita”, que ele publicou a partir de 1° de janeiro de 1858, às suas custas e sozinho, ele disse: “Reconheci, mais tarde, que fora para mim uma felicidade não ter tido quem me fornecesse fundos, pois assim me conservava mais livre, ao passo que outro interessado houvera querido talvez impor-me suas ideias e sua vontade e criar-me embaraços. Sozinho, eu não tinha que prestar contas a ninguém, embora, pelo que respeitava ao trabalho me fosse pesada a tarefa.” (“Obras Póstumas”).
 
Esses pequenos trechos mostram o perfil do caráter de Kardec. Ele percebeu a extensão do projeto que a doutrina poderia desenvolver em benefício da humanidade e fez disso a obra de sua vida.
 
Embora muitos contestem, Canuto Abreu afirmou que uma era a posição de Kardec, quando da publicação da 1ª edição de “O Livro dos Espíritos” e outra a partir da 2ª edição, em 1860. Segundo ele, no curto espaço entre as duas edições de “O Livro dos Espíritos”, isto é de 1857 a 1860, Kardec assumiu sua verdadeira posição de autor da Doutrina. Eis o que ele escreveu: “O papel do Homem sobreleva ao dos Espíritos. Os Instrutores ficam em segundo plano, como simples testemunhas informantes ou de ciência própria perante juiz severo e lúcido. O Discípulo torna-se Mestre. Nivela-se o Aprendiz com os Instrutores. Julga. Critica. Distingue. Seleciona. Atende somente a seu criterium, confia só em seu discernimento. Inspira-se apenas no Espírito Verdade, diretamente, e que nunca o abandonou.” (Nota do tradutor in “O Primeiro Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec).
 
O que não resta dúvida é que ele possuía um espírito crítico digno de um pesquisador e um pensamento filosófico definido. Ele foi um filósofo da práxis, como mais tarde diria Marx. Diante dos fatos e diante da ancestralidade dos temas que abordara, ele julgou que era importante, sobretudo, dar um sentido prático às revelações que os Espíritos traziam, a maior delas, naturalmente, a prova de sua existência.
 
Conforme acentuou, ele elucubrara um sistema filosófico. Os iniciadores dos grandes sistemas filosóficos foram antes de tudo revolucionários na medida em que reestruturaram concepções soltas, pensamentos diversos e deram um novo sentido ao que era disperso e imaginário.
 
Kardec também partiu das instruções dos Espíritos, das observações pessoais sobre diferentes tipos de níveis de evolução, inteligência, conhecimento, afeto e formulou um sistema filosófico, arcando com a responsabilidade e sofrendo os ataques rotineiros de invejosos, opositores gratuitos e mal-intencionados.
 
Mas teve uma vantagem, sua ligação com os Espíritos Superiores foi muito íntima, mas respeitosa. De modo algum havia uma subordinação, nem um atrelamento automático dele em relação a eles. Houve uma contínua e perfeita parceria.
 
Kardec pensou grande, isto é, anteviu um sistema que contemplava uma revolução moral, a partir de fundamentos conceituais que teriam como fruto a desmobilização de bases materialistas, ateístas, niilistas da sociedade.
 
Por isso o que realmente importou-lhe foi estabelecer uma relação moral básica. Ele foi um homem complexo: humanista, educador, escritor, filósofo, moralista, no melhor sentido da palavra. Embora injuriado, atacado, traído, mostrou um espírito tolerante e, ciente da inevitabilidade da evolução do pensamento, preparou a Doutrina para se manter atualizada.
 
Embora as tênues separações entre o pensamento filosófico e o teológico, nas questões morais Allan Kardec procurou delinear o suporte moral do Espiritismo, dentro de um critério filosófico, não místico: “O Espiritismo é uma doutrina filosófica, de efeitos religiosos, como qualquer filosofia espiritualista, pelo que forçosamente vai ter às bases fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma, a vida futura. Mas não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos, nenhum tomou nem recebeu o título de sacerdote ou de sumo-sacerdote.” (“Obras Póstumas”, Ligeira resposta aos detratores do Espiritismo).
 
O fundador do Espiritismo foi de um caráter firme, decidido e o consolidador de uma proposta de renovação integral da sociedade, por uma nova visão do homem e do mundo.
 
REVOLUÇÃO COMPLEXA
 
Allan Kardec pensou o Espiritismo como instrumento da Revolução do Espírito. Ele disse: “O simples fato de poder o homem comunicar-se com os seres do mundo espiritual traz consequências incalculáveis da mais alta gravidade; é todo um mundo novo que se nos revela e que tem tanto mais importância, quanto a ele hão de voltar todos os homens, sem exceção.
O conhecimento de tal fato não pode deixar de acarretar, generalizando-se, profunda modificação nos costumes, caráter, hábitos, assim como nas crenças que tão grande influência exerceu sobre as relações sociais, É uma revolução completa a operar-se nas ideias, revolução tanto maior, tanto mais poderosa, quanto não se circunscreve a um povo, nem a uma casta, visto que atinge simultaneamente, pelo coração, todas as classes, todas as nacionalidades, todos os cultos.” (“A Gênese”, cap. I, item 20).
 
Para ele, a Doutrina seria o ponto de apoio dessa reformulação moral da humanidade, da qual decorreria toda uma nova era para o planeta azul. Entretanto, tudo deve se encadear, tudo segue um rumo esboçado pela divindade. O objetivo maior é a identificação do ser humano, a construção de uma sociedade harmônica e justa, com a valorização do humano.
 
A ideia de que se poderia alcançar a Revolução do Espírito sem resolver as questões fundamentais das relações humanas, seguia o mesmo rumo dos apelos pela salvação que foram feitos não apenas no cristianismo, como em todas as religiões.
 
Transformações mágicas sempre povoaram a mente das pessoas e animaram o imaginário de gerações. Todavia, a criação de uma nova sociedade é complexa e depende da solução de problemas que obstruem o caminho do bem-estar material e prepare a base para o bem-estar espiritual.
 
A Revolução do Espírito não poderá ser implantada à revelia das condições de miséria e ignorância reinantes na maioria das nações e países. Na visão geopolítica, econômica e sociológica do fim deste século 20, percebemos uma extraordinária evolução no cenário humano. Em menos de 100 anos esse cenário mudou e está em acelerado processo de mudança.
 
O tempo de Kardec maravilhava-se com a eletricidade e a máquina a vapor, com o telégrafo sem fio. Tudo isso parece irrisório diante das conquistas tecnológicas e o desenvolvimento do pensamento científico que, como sabemos, dá novo sentido aos parâmetros idealizados pelo espiritualismo e demais crenças.
 
Se o século 19 refletiu a agitação social e política da Europa, não apenas no campo teórico, mas em ações como a Comuna de Paris, os movimentos comunista, socialista e anarquista, ao lado da agitação científica a ensaiar o salto tecnológico que explodiria no século 20, tudo isso prenunciava o grande desafio que é a valorização da pessoa humana.
 
Embora todos os percalços, desde aí caminhou-se e caminha-se para a valorização do ser humano, que ganhou novas dimensões, com a revolução feminina deste século, preparando o futuro da humanidade valorizada em direitos e deveres, sem discriminação sexual.
 
Ainda persistem outros focos de inquietação. Como a discriminação racial, a miséria e a exploração das pessoas. Mas já existe um delineamento irrecorrível que cria uma consciência que vai se consolidando sobre a fatuidade dessas posições e que redundará na solução dessa desigualdade fabricada pelas elites.
 
Outro fator ponderável é que o mundo não é apenas o Ocidente ou apenas o Oriente, o Oriente Médio. A felicidade não poderia vir apenas para o branco europeu, mas deverá ser, em termos genéricos, estender-se a todos, ainda que de forma desigual, mas basicamente digna.
 
O colonialismo territorial cedeu e foi sucedido, em parte, e como talvez seria inevitável, pelo colonialismo cultural, político e econômico, o que suscita estertores dos partidários de um mundo ideal, sem classes, igualitário, com exata e substancial distribuição da riqueza, meta sem dúvida a ser alcançada nos séculos futuros.


Para isso, não são pouco os que esperam grandes manifestações da natureza, com a morte de milhões, limpando a Terra dos maus elementos. Nesse caso, os poucos e bons habitantes que restariam desfrutariam do caos e da destruição que os elementos naturais provocariam, para não falar dos que prosseguem esperando a espetacular vinda do Senhor, para separar os bodes das ovelhas.


Como se pretendeu salvar a criatura humana pela graça divina, pretendeu-se transformar a sociedade humana pela graça do comunismo que essencialmente prega a solidariedade, a união em torno de ideais. Seriam eliminadas as classes, a miséria seria erradicada, os “maus” seriam condenados e cessariam quaisquer discriminações entre pessoas e raças.


Os regimes impostos pela revolução bolchevista e que tentaram criar esse falso paraíso faliram desastrosamente. Não apenas porque se basearam no controle da produção, sem espaço para a criatividade e pelo sufoco da liberdade, mas, sobretudo, porque desprezaram a realidade evolutiva da maioria, os desejos e as deficiências morais das pessoas, tanto as que dominaram como as que foram dominadas.
 
A SOLIDARIEDADE DO PROCESSO


A história mais recente está a nos demonstrar que a Revolução do Espírito será alcançada através de um longo processo de maturação da sociedade humana, tão dispersa e diversa em moralidade, riqueza e nível social.


A iniciativa de Kardec é a semente do futuro. As projeções de uma nova sociedade mais fraterna e sem o peso esmagador do egoísmo e do orgulho, foram feitas dentro de um quadro otimista, mas prudente.


Segundo várias comunicações de Espíritos, desde há um século antes de Kardec, se preparava uma renovação abrangente, que incluía a justiça social, a supremacia do bem sobre o mal: “O progresso da Humanidade se cumpre, pois, em virtude de uma lei que resulta da vontade de Deus, não de uma vontade acidental e caprichosa, mas de uma vontade imutável. Quando, por conseguinte, a Humanidade está madura para subir um degrau, pode dizer-se que são chegados os tempos marcados por Deus, como se pode dizer também que, em tal estação, eles chegam para a maturação dos frutos e sua colheita.” (“A Gênese”, cap. XVIII, item 2).


E Kardec acrescenta : “Nestes tempos, porém, não se trata de uma mudança parcial, de uma renovação limitada a certa região, ou a um povo, a uma raça. Trata-se de um movimento universal, a operar-se no sentido do progresso moral. (...)Aliás, todos sabem quanto ainda deixa a desejar a atual ordem de coisas. Depois de se haver, de certo modo, considerado todo o bem-estar material, produto da inteligência, logra-se compreender que o complemento desse bem-estar somente pode achar-se no desenvolvimento moral.” (Idem, item 6).


A consolidação da imortalidade não será apenas obra do Espiritismo. Mesmo na fase que sucedeu ao surgimento do Espiritismo, os maiores pesquisadores dos fenômenos psíquicos não estavam ligados à Doutrina. Alguns foram mesmo críticos do Espiritismo.


Entretanto, desde 1857, quando Kardec nos oferta “O Livro dos Espíritos”, na verdade consolidado a partir de l860 com a 2ª edição, filósofos, cientistas e pesquisadores se entregaram com ardor e eficiência à prova experimental da imortalidade, utilizando o instrumento da mediunidade, que ele recuperara dando-lhe o nível de dignidade e de faculdade humana, respeitável e útil.


Sem qualquer prepotência, podemos afirmar que a Doutrina Espírita é a única que possui um conjunto de fatores experimentais e ideológicos que dão sentido à imortalidade e abrem uma perspectiva justa e progressiva para os seres espirituais, que são as criaturas humanas. Estabelecendo os fundamentos da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, ele escreveu na “Revista Espírita” de julho de 1859: “O objetivo da Sociedade não é apenas a pesquisa dos princípios da Ciência Espírita. Ela vai mais longe, estuda também suas consequências morais, pois é principalmente nestas que está a sua verdadeira utilidade”.


Logo, a Revolução do Espírito não será precipitada por acontecimentos insólitos, mas será resultado e ao mesmo tempo influenciada por mutações progressivas, abrangendo o conjunto das pessoas, derrubando preconceitos e superando os desafios que a complexidade do tema apresenta, sem que se possa estabelecer um tempo limitado.


Fonte: Abertura - jornal de cultura espírita, outubro de 1999. Licespe – Santos-SP..


sábado, 16 de fevereiro de 2013

Allan Kardec Racista?



Por Eugenio Lara


A questão do racismo no pensamento de Allan Kardec é bastante controversa. Há quem o considere racista por suas declarações acerca da raça negra. Outros preferem ignorar, dão de ombros e fingem que nada foi dito: tergiversam. “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, diz o dito popular. A consideração do contexto histórico em que Kardec fez tais declarações é fundamental para entendermos seu pensamento, sem cairmos em posições extremadas.

No século 19, a rigor, toda a Europa era “racista”, por se autoconsiderar como modelo, como padrão estético e cultural. Este fato, somado ao quase completo desconhecimento da realidade cultural e social do continente africano, fazia de qualquer europeu de classe média um sujeito preconceituoso em relação a outras culturas e etnias, especialmente a africana. Ainda mais os franceses, que são xenófobos históricos e bastante chauvinistas. Kardec não seria exceção, tanto quanto os médiuns que colaboraram com ele na estruturação do Espiritismo.

Um dos primeiros fatos a serem considerados é a filiação de Allan Kardec à Frenologia (ou Craniologia), que na época obteve certa proeminência. Considerada hoje como pseudociência, foi fundada pelo médico alemão Franz Joseph Gall (1758-1828). Segundo essa pretensa teoria científica, as formas do crânio, sua morfologia, teriam relação com o caráter, com a moralidade e até com a espiritualidade. O grande criminalista e espírita italiano César Lombroso também era partidário dessa teoria. Kardec foi membro e secretário por vários anos da Sociedade Frenológica de Paris.

A adesão a essa pseudociência levou Kardec a pensar sobre o aspecto físico do negro, na suposta expressão de sua inferioridade intelecto-moral pela morfologia, o seu biótipo, em comparação com a raça caucasiana, como vemos nessa afirmação categórica: “O negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um gato; mas, não é belo em sentido absoluto, porque seus traços grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem exprimir as paixões violentas, mas não podem prestar-se a evidenciar os delicados matizes do sentimento, nem as modulações de um espírito fino.”

Hoje polêmica, esta afirmação de Kardec em Obras Póstumas (Teoria da Beleza) reforça sua ideia de que a raça branca seria a mais bela e evoluída: “podemos, sem fatuidade, creio, dizer-nos mais belos do que os negros e os hotentotes. Mas, também pode ser que, para as gerações futuras, melhoradas, sejamos o que são os hotentotes com relação a nós. E quem sabe se, quando encontrarem os nossos fósseis, elas não os tomarão pelos de alguma espécie de animais”.

É fundamental considerar também o fato de que o século 19 foi marcado por uma visão desenvolvimentista, “evolucionista”, de que haveria um padrão de progresso civilizatório a ser alcançado pelos seres humanos, pelas sociedades. De tal modo que, sob essa visão eurocentrista, marcada pelo positivismo, muitos povos e grupos sociais eram vistos como “primitivos”, “atrasados”, por não possuírem o mesmo progresso tecnológico e cultural das sociedades ditas “civilizadas”. É essa a concepção de mundo que possuía Allan Kardec, presente tanto em seu modo de pensar como no corpo doutrinário do Espiritismo.

No entanto, há um diferencial que precisa ser considerado. O critério de Kardec não é somente o tecnológico, cultural. O critério dele é profundamente ético. Segundo o Espiritismo, uma nação somente poderá se considerar civilizada se praticar a lei de amor e caridade, se houver alteridade, o respeito ao próximo, liberdade, fraternidade e igualdade entre todos os seus membros.
 
A libertação feminina é a “pedra de toque” dessa questão. Uma sociedade que trata as mulheres com violência, prepotência, desprezo e discriminação não tem o direito de se considerar civilizada. O Espiritismo sempre foi contra qualquer tipo de escravidão. Foi pioneiro em relação à defesa dos direitos das mulheres, num século em que a mulher ainda era muito mais discriminada e desrespeitada do que hoje. Denizard Rivail/Amélie Boudet foram exemplo de casal fora das regras de sua época. Gabi era quase dez anos mais velha do que Rivail, um fato insólito e pouco desejável. Os dois não tiveram filhos, outra estranheza. Mesmo oriunda de família rica, Gabi sempre trabalhou e, ao invés de se dedicar às futilidades próprias das senhoritas e matronas da elite francesa, preferiu manter-se ao lado do marido, como parceira, colaboradora, dando-lhe apoio logístico, afetivo e doutrinário em sua empreitada. E prosseguiu, após a desencarnação de Rivail, o trabalho por ele iniciado.

Além da questão da mulher, acrescentaríamos ainda o tratamento dado aos idosos, às crianças, aos animais, à natureza, como fatores fundamentais para a identificação do provável progresso civilizatório de uma nação.

Isto posto, a afirmação de que Allan Kardec teria sido racista é equivocada. Sem saber, ele era preconceituoso em relação ao negro, aos índios, aborígenes etc. assim como todo e qualquer europeu de seu tempo também o era. Expressou a visão de sua época, marcada pelo preconceito em relação à diversidade cultural, étnica. Isto não significa que ele discriminasse o negro, que o visse como um objeto, um animal de carga. A escravidão, seja ela qual for, é condenada pelo Espiritismo. Já o era pelos iluministas. Essa herança, Kardec também assimilou. Segundo o Espiritismo, nenhum ser humano deve ser tratado como objeto.

Além disso, a ideia de que Kardec seria racista é, também, incompatível com a proposta espírita em relação ao progresso da civilização:

799. De que maneira o Espiritismo pode contribuir para o progresso?

– Destruindo o materialismo, que é uma das chagas da sociedade, ele faz os homens compreenderem onde está o seu verdadeiro interesse. A vida futura, não estando mais velada pela dúvida, o homem compreenderá melhor que pode assegurar o seu futuro através do presente. Destruindo os preconceitos de seita, de casta e de cor ele ensina aos homens a grande solidariedade que os deve unir como irmãos. (O Livro dos Espíritos - trad. Herculano Pires, grifo meu).

As afirmações de Allan Kardec sobre o negro, a correlação da teoria espírita da evolução com a Frenologia, demonstram o seu evidente preconceito, mas não o guindam à condição de racista, tipo um Hitler, um neonazista ou algum membro radical da Ku Klux Klan. Preconceituoso sim, racista não!
 
Fonte: www.viasantos.com/pense.



sábado, 9 de fevereiro de 2013

A SÍNTESE KARDEQUIANA


Por Maurice Herbert Jones
 
 
Segundo o filósofo e pacifista britânico Bertrand Russel, a Filosofia é algo que se situa entre a Teologia e a Ciência. Todo o conhecimento definido pertence à Ciência e todo dogma, pertence à Teologia. Mas, entre a Teologia e a Ciência existe um território de ninguém, onde as nossas reflexões, as nossas idéias, os nossos mais simples pensamentos, transitam sem dificuldades, sem formalismos – esta terra de ninguém é uma terra de todos: é o chão da Filosofia.
 
O mundo, indaga ele, está dividido em espírito e matéria? Se assim é, o que é o espírito e o que é a matéria? Quem está sujeito a quem? Será o espírito dotado de alguma independência? Possui o universo alguma unidade ou propósito e se possui estará ele evoluindo a caminho da sua finalidade? Será que existem mesmo leis da natureza ou só acreditamos nelas devido ao nosso amor pela ordem? Existe alguma maneira de viver que seja mais nobre ou menos nobre? Em que consistiria o modo de vida nobre e como realizá-lo?
 
Evidentemente não encontraremos respostas a estas questões nos laboratórios. Responder a elas é empenho da Filosofia pois, se nem todas as nossas especulações podem ser respondidas pela Ciência, é também verdade que as respostas confiantes dos teólogos, aceitas no passado, já não nos convencem mais, conclui o pensador na sua “História da Filosofia Ocidental”.
 
Seria o Espiritismo numa resposta inteligente a estas profundas questões de ordem filosófica? Vários elementos que estruturam o pensamento espírita respondem positivamente a esta indagação e o credenciam como um modo moderno, ventilado e revolucionário de percepção do homem e do mundo, bem como precioso instrumento pedagógico para o autoconhecimento e controle racional da própria evolução.
 
O grande problema da ética como estudo racional da moralidade se resume em saber se é desejável ser bom e, em caso afirmativo, como pode ser o homem persuadido a ser bom. A esta intrigante questão o Espiritismo responde com a idéia da evolução e, sobretudo, com os princípios da reencarnação e da causalidade que oferecem substrato racional riquíssimo para a adoção consciente de um modelo comportamental fundamentado na tolerância racial e social, configurando assim a ética natural, sonhada por Sócrates, capaz de construir um sistema de moralidade independente de credos teológicos.
 
Na visão do filósofo J.Herculano Pires, o Livro dos Espíritos, veículo privilegiado destas idéias inovadoras, mesmo não tendo sido elaborado em linguagem técnica e nem observe as minúcias da exposição filosófica, revela todo um complexo e amplo sistema de filosofia. É, portanto, o arcabouço filosófico do Espiritismo.
 
Como se vê, Kardec não foi um filósofo na acepção mais usual do termo, nem exatamente um cientista. Foi, isto sim, e acima de tudo, um extraordinário pedagogo, qualificação essencial para a compreensão e propagação do Espiritismo até os dias atuais.
 
A precoce percepção de que somente a educação e o amor poderiam encaminhar solução para os problemas sociais e morais do seu tempo fez de kardec herdeiro natural de uma magnífica linhagem de educadores que começa, no século XVII, com Comenius, o pai da didática moderna, passa, no séc. XVIII, pelo filósofo J.J. Rousseau e seu “Emílio”, terminando no grande e sábio mestre da educação como ato de amor, J.H. Pestalozzi.
Como um estuário das correntes de idéias mais generosas e libertárias que irrigaram a cultura da Europa desde a renascença, Kardec chegou à maturidade equipado, moral e intelectualmente, para a grande tarefa de sua vida: a construção de uma síntese conceptual do mundo moderno, a Codificação Espírita, centrada na idéia da evolução e na realidade e primado da vida espiritual.
 
Esta extraordinária façanha, resultado do trabalho de homens encarnados, assessorados por homens desencarnados, tornou-se possível, no tempo e no espaço, pela feliz conjugação de fatores políticos, sociais, econômicos e culturais aliados à sensibilidade, lucidez e coragem do mestre educador Hippolyte Léon Denizard Rivail cujo bicentenário de nascimento estamos comemorando neste 3 de outubro de 2004.
 
Segundo muitos historiadores, o Renascimento e a Reforma Luterana são as duas mais importantes nascentes da história moderna. Uma libertou o espírito e embelezou a vida, oferecendo ao homem o direito à felicidade aqui na terra; a outra estimulou a crença e o senso moral. As idéias contidas no bojo destes movimentos, propagadas pelas facilidades oferecidas pela descoberta de Gutenberg e dinamizadas pela revolução conceptual produzida pela descoberta da América e pela revelação de Copérnico, varreram a Europa a partir do final do Séc. XV e início do Séc. XVI, desencadeando uma irresistível avalanche de mudanças, crises e conflitos ideológicos num mundo cansado do repouso medieval e ansioso pela descoberta de novos mundos, novos caminhos, novas idéias.
No Século XVIII o Renascimento cede espaço para o Iluminismo que, tendo razão e liberdade como estandarte, enfrenta a superstição e a opressão, produzindo significativa redução de importância da Igreja e influindo por seus princípios na independência dos Estados Unidos e na Revolução Francesa, fatos que, entre outros, assinalam o colapso da França feudal, uma importante ampliação das liberdades civis e a transição da Idade Moderna para a Contemporânea.
 
Se acrescentarmos a este sintético painel o crescimento exponencial da população a partir de 1750 em função de avanços na produção agrícola, higiene e medicina e mais a revolução industrial iniciada na Inglaterra provocando intenso deslocamento das populações rurais para as cidades com todo o conjunto de conseqüências sociais, políticas e econômicas, encerraremos o século das luzes já experimentando um certo cansaço da arrogância racionalista e criando espaço para o surgimento do Romantismo que valorizando o sentimento caracteriza o século XIX, o século de Kardec.
 
O nascimento em 1804 e a formação intelecto-moral do futuro Codificador do Espiritismo ocorre em plena era de Napoleão que, no mesmo ano é coroado Imperador e promulga o Código Civil dos Franceses ou “Código de Napoleão”, de importância decisiva no direito ocidental e, conforme o próprio Imperador, sua maior obra.
 
Kardec era um homem da sua época, cosmopolita, sensível, arguto e naturalmente aberto às influências mais nobres que a história e a experiência lhe ofereciam. Enquanto aprimorava sua formação no Instituto de Pestalozzi em Yverdon e, depois, na vida profissional, como educador, outros acontecimentos ocorriam, com enorme significado e presença na sua futura e máxima obra.
 
Além dos importantes desdobramentos geopolíticos do período napoleônico, podemos identificar as revolucionárias teorias evolucionistas de Lamark e Darwin de enorme repercussão, a Filosofia Positivista de Auguste Comte e, até, o Manifesto Comunista de Marx e Engels, produto da agitação social da nova classe operária.
 
Neste cenário imponente e desafiador, buscava-se afanosamente um novo modelo conceptual para o tempo novo que surgia, pois os paradigmas vigentes haviam esgotado a capacidade de oferecer segurança e identidade. É então que, já maduro e sensível às inquietações do seu mundo e à convocação do mundo espiritual, Kardec aceita a responsabilidade de liderar o grande esforço para construção de uma nova visão de homem e de mundo, humanista e dinâmica, na qual razão e sentimento pudessem, harmonicamente, buscar a verdade.
 
E assim, como uma flor tardia da primavera iluminista, nascida no solo adubado pelo romantismo de Rousseau e Pestalozzi, surgiu o Espiritismo que, com seu “humanismo espiritocêntrico”, busca superar, dialeticamente, o conflito entre o pensamento medieval centrado em Deus e o humanismo organocêntrico da renascença e iluminismo. A cosmovisão inovadora e sintética oferecida por Karde ao mundo nascia, robusta e perturbadora, desafiando os paradigmas senis e anunciando, no dizer do físico inglês Oliver Lodge, “uma nova revolução copérnica”.
 
Maurice H. Jones 25/09/2004


Qual é a filosofia espírita?


Por Humberto Schubert Coelho

 

Da compreensão geral de que o Espiritismo é ou tem uma filosofia surge a necessidade de explicitá-la. Os seus adeptos reproduzem com acerto os seus aspectos filosóficos, e os separam com habilidade adquirida pelos estudos kardequianos daqueles outros científicos e religiosos. E também o caráter filosófico de uma doutrina qualquer é sempre mais discernível e menos controverso do que um seu possível elemento científico. Estas são razões pelas quais se fala numa filosofia espírita com alguma segurança.
 
Entretanto, a academia possui no que tange à filosofia não menos exigências e regras do que as que competem à prática das ciências. Afinal, então, o que é e como se sustenta a filosofia espírita? Tentaremos mais problematizar do que responder a este questionamento.
 
Do ponto de vista da filosofia como especialidade, o Espiritismo apresenta-se como filosofia popular, o que equivale a dizer, como razão argumentativa, mas não fundamentadora. Esta qualificação não precisa ser pejorativa, e mesmo algumas das melhores filosofias tiveram um cunho acentuadamente popular, como em Voltaire, Rousseau e Nietzsche. É também uma visão filosófica válida e oficial a de que a razão já está desde sempre em jogo com seus problemas específicos, e não pode ou não requer fundamentação. Ainda assim, a maior parte do que se produziu sob o título de filosofia na história humana destinava-se à fundamentação do conhecimento.
 
São mentes analíticas e interessadas na fundamentação das certezas a de Platão, a de Descartes, a Locke e a de Kant, alguns, portanto, dos maiores filósofos. Segundo estes a atividade filosófica não se faz propriamente sem o esforço exaustivo de sua própria crítica, de modo que qualquer filosofia digna do nome ou vai até as últimas consequências ou compra um método que já o tenha feito. Os bons filósofos populares o são por seu interesse prático (moral ou político), sem que dispensem o concurso de uma boa base metodológica. E se Kardec foi um bom filósofo popular, o que acreditamos razoável afirmar, devemos encontrar em sua prática os princípios de algum ou alguns filósofos mais analíticos, para não dizer sistemáticos (nome que à época não soava bem).
 
O primeiro indício de que Kardec não é um filósofo sistemático está em ele lançar mão de múltiplos conceitos e axiomas sem os justificar. Esta atitude pode significar, como dito, tanto o descompromisso com a filosofia quanto uma adoção prévia de métodos filosóficos bem estabelecidos. E não há a mais remota dúvida de que os conceitos e axiomas pressupostos por Kardec correspondem à visão eclética do saber filosófico de princípios do século XIX. Em primeiro lugar porque todos estes pressupostos pertencem à ala ortodoxa da filosofia francesa, requerendo assim pouca ou nenhuma exposição sistemática; em segundo lugar porque estas conquistas em especial eram classificadas como conquistas da ilustração e todos os autores da época estavam habituados a assumir os elementos deste grande edifício eclético e enciclopédico como ponto de partida. Pensadores tão importantes como Benjamin Constant, Madame de Staël e Tocqueville jamais se preocupam, assim como Kardec, em fundamentar o conceito de razão, ou analisar a constituição metafísica da liberdade. Ao invés disto eles os tomam do poço da filosofia iluminista e os aplicam com habilidade de filósofos práticos aos seus interesses.
 
Para elencar alguns dos pressupostos essenciais da classe ilustrada francesa e/ou européia dos anos 1800 a 1840 podemos citar resumidamente:
 
 
I)             A fundamentação do pensamento por Descartes, com a respectiva separação entre o princípio pensante do princípio material, a constituírem os modos de ser.
 
II)            A ideia platônica de que a matemática corresponderia ao modus operandi da natureza. Noção renascentista que foi solidificada por Galileu, Bruno e Descartes.
 
III)           O atomismo de Diderot, que copiando Demócrito e Epicuro postulou todas as leis da física como consequências das leis que regem as partículas elementares.
 
IV)          A noção de liberdade como direito garantido por Deus, uma ideia cristã que se desenvolveu em séculos de teologia e filosofia, casando-se com as noções gregas de liberdade e culminando no axioma da liberdade humana conforme Locke, Voltaire e Rousseau.
 
V)           A positividade da experiência como fundamento do saber, desenvolvida por Comte e imediatamente diversificada e adaptada por inúmeros pensadores e cientistas.
 
Poderíamos citar outros pontos, mas isto só aumentaria o volume de uma defesa que consideramos suficientemente estabelecida.
 
Está claro ao filósofo contemporâneo que a segurança de algumas destas pressuposições foi duramente abalada, durante o próprio século XIX e especialmente no XX. O item mais controverso hoje é o da equivalência entre matemática e natureza, ainda defendida com certa ingenuidade por muitos físicos e francamente proibida pela filosofia da ciência. O que se pode dizer hoje com sobriedade filosófica é que haja alguma correspondência entre as leis que postulamos matematicamente e o funcionamento da natureza, mas precisar a exatidão desta correspondência seria considerado uma postura dogmática.
 
Basta, contudo, o conhecimento do contexto histórico para lembrar que a nova filosofia responsável por questionar as certezas iluministas é de matriz alemã, e não estava plenamente acessível aos franceses da primeira metade do século XIX.
 
Apesar de estar entre os poucos falantes de alemão da sociedade francesa da época, Allan Kardec provavelmente compartilhava da crença geral de seu povo a respeito dos germanos: a de se tratarem de um povo grosseiro recém chegado às raias da civilidade e que ensaiava suas forças intelectuais numa filosofia prolixa, mas essencialmente infrutífera.
 
O posterior sucesso da filosofia alemã com todo o seu aparato crítico, a restauração da metafísica pelo Idealismo e as reviravoltas teológicas marcou para sempre a face da filosofia, um fenômeno que a vaidade francesa ainda digere com atraso.
 
A filosofia sistemática viu sua tocha ser cedida da França para a Alemanha, e desta para o mundo globalizado do pós-guerra. Resta saber em que medida isto depõe contra as filosofias práticas e populares.
 
Neste particular uma comparação entre Kardec e os outros filósofos populares franceses é indispensável. A maioria deles, exatamente por ser popular, sofreu minimamente com a transformação da filosofia sistemática, e a popularidade dos pensadores políticos e religiosos, dos psicólogos e moralistas franceses continuou tão irretorquível sob a luz dos sistemas alemães como quando em seu terreno natural do Iluminismo autóctone.
 
Redefinidos os fundamentos dos conceitos de razão e liberdade, sobre bases mais críticas e rigorosas, continuaram a viger na esfera prática as conclusões e intuições sóbrias que a análise social e psicológica francesa ou inglesa havia efetuado em dois ricos séculos de modernidade.
 
A filosofia atual se esforça por refinar a fundamentação metafísica e epistemológica da razão, de Deus, da liberdade e da relação entre sujeito e objeto, etc., mas no campo prático e popular a maioria dos postulados iluministas continua a viger como moeda válida de interpretação dos fenômenos naturais e sociais. Em muitos aspectos, mudaram os caminhos, mas permaneceram os resultados da filosofia. É bem mais ingênuo ver algo de “errado” em Platão, por incompatibilidade de seus métodos com os recentes, do que dispensar os métodos recentes na apreciação de trabalhos filosóficos pregressos; e a história da filosofia continua a ser fonte de inspiração principal para os que pretendem reelaborá-la com vistas ao futuro.
 
Qual é, então, a base filosófica do Espiritismo, se o ecletismo espiritualista francês e o positivismo que o constituíram estão agora em cheque? Precisamente a mesma base que continuou a sustentar as outras filosofias práticas e populares após a substituição da Ilustração francesa, seu ecletismo e positivismo, pela filosofia crítica alemã.
 
Procurai então os defensores de Pascal, Voltaire, Rousseau, Staël e Tocqueville, e achareis o caminho para sustentar em linguagem atualizada aqueles mesmos pressupostos que fomentam o método kardequiano. E os caminhos para esta revisão técnica da filosofia espírita podem ser muitos, como muitas são as correntes mais recentes. O pragmatismo de James, a filosofia liberal e crítica de Popper e mesmo uma forma revisada da analítica existencial de Heidegger, como foi intentado por Herculano Pires, podem ser boas soluções.
 
Particularmente acho que a forma mais apropriada seja a da Metafísica da Subjetividade, uma variante eclética que se apropria de praticamente todas as outras correntes contemporâneas numa forma ao mesmo tempo clássica e crítica da metafísica, permitindo a validade dos conceitos-chave de Deus, imortalidade, razão e liberdade.
 
 
·         O autor é professor e escritor com formação em filosofia e religião, tendo por interesses principais a teologia, história, religião comparada, metafísica e ética.
 
 
Fonte: http://filosofiaespiritismo.blogspot.com.br/

O LIVRE PENSAMENTO E A LIVRE CONSCIÊNCIA





 
Revista Espírita – Fevereiro de 1867
 
Num artigo de nosso último número (página 6), intitulado: Golpe de vista retrospectivo sobre o movimento do Espiritismo fizemos duas classes distintas dos livres pensadores: os incrédulos e os crentes, e dissemos que, para os primeiros, ser livre pensador não é somente crer naquilo que se quer, mas não crer em nada: é se libertar de todo freio, mesmo do medo de Deus e do futuro; para os segundos, é subordinar a crença à razão e se libertar do jugo da fé cega. Estes últimos têm por órgão de publicidade a Livre consciência, título significativo; os outros, o jornal o Livre pensamento, qualificação mais vaga, mas que se especializa pelas opiniões formuladas, e que vêm de todos os pontos, corroborar a distinção que fizemos. Ali lemos no n-2 de 28 de outubro de 1866: “As questões de origem e de fim preocuparam até aqui a Humanidade, a ponto, frequentemente, de perturbar sua razão”.
 
 
Estes problemas que se qualificaram de terríveis, e que cremos de importância secundária, não são do domínio imediato da ciência. Sua solução científica não pode oferecer senão uma meia certeza. Tal qual é, no entanto, ela nos basta, e não tentaremos completá-la por argúcias metafísicas. O nosso objetivo é, aliás, de não nos ocuparmos senão dos assuntos abordáveis pela observação. Entendemos permanecer sobre a Terra. Se, às vezes, dela nos afastamos para responder aos ataques daqueles que não pensam como nós, a excursão fora do real será de curta duração. Teremos sempre presente ao pensamento este sábio conselho de Helvétius: "É preciso ter a coragem de ignorar o que não se pode saber."
 
"Um novo jornal, a Livre consciência, nossa primogênita de alguns dias, como o fez notar, nos deseja a boa vinda em seu número de amostra grátis. Nós lhe agradecemos pelo modo cortês pelo qual usou de seu direito de primogenitura. Nosso confrade pensa que, apesar da analogia dos títulos, não estaremos sempre em "completa afinidade de idéias." Nós, depois da leitura de seu primeiro número, disto estamos certos; não compreendemos mais a livre consciência do que o livre pensamento com um limite dogmático assinalado antecipadamente. Quando sede clara claramente discípulo da ciência e campeão da livre consciência, é irracional, em nossa opinião, colocarem seguida como um dogma uma crença qualquer, impossível de provar cientificamente. A liberdade limitada da sorte não é a liberdade. De nosso turno, desejamos as boas-vindas à Livre consciência, e estamos dispostos a ver nela uma aliada, uma vez que declara querer combater por todas as liberdades... menos uma."
 
É estranho ver considerar a origem e o fim da Humanidade como questões secundárias próprias para perturbar a razão. Que se diria de um homem que, vivendo o dia-a-dia, não se inquietasse de como viverá amanhã? Passaria por um homem sensato? Que se pensaria daquele que, tendo uma mulher, filhos, amigos, dissesse: Que me importa que amanhã estejam mortos ou vivos! Ora, o dia seguinte da morte é longo; não é preciso, pois, se admirar que tanta gente com isto se preocupe. Se se fizesse a estatística de todos aqueles que perdem a razão, ver-se-ia que o maior número está precisamente do lado daqueles que não crêem nesse dia seguinte ou que dele duvidam, e isto, pela razão muito simples de que a grande maioria dos casos de loucura é produzida pelo desespero e a falta de coragem moral que faz suportar as misérias da vida, ao passo que a certeza desse dia seguinte torna menos amargas as vicissitudes do presente, e as faz considerar como incidentes passageiros, cujo moral não se afeta senão mediocremente ou nada se afeta. Sua confiança no futuro lhe dá uma força que jamais terá aquele que não tem por perspectiva senão o nada. Ele está na posição de um homem que, arruinado hoje, tem a certeza de ter amanhã uma fortuna superior àquela que acaba de perder. Neste caso, toma facilmente seu partido, e permanece calmo; se, ao contrário, ele nada espera, se desespera e sua razão pode sofrer com isto. Ninguém contestará este princípio: saber dia por dia de onde se vem e para onde se vai, o que se fez na véspera e o que se fará amanhã, não seja uma coisa necessária para regular os negócios diários da vida, e que ela não influi sobre a conduta pessoal.
 
Seguramente o soldado que sabe para onde se o conduz, que vê seu objetivo, marcha com mais firmeza, com mais vivacidade, mais entusiasmo do que se o conduzisse às cegas. Ocorre assim do pequeno ao grande, da individualidade ao conjunto; saber de onde se vem e para onde se vai não é menos necessário para regular os negócios da vida coletiva da Humanidade. No dia em que a Humanidade inteira tiver a certeza de que a morte é sem saída, ver-se-á uma confusão geral, e os homens se lançarem uns sobre os outros, dizendo: Se não deveremos viver senão um dia, vivamos o melhor possível, não importa às expensas de quem!
 
O jornal o Livre pensamento declara que entende permanecer sobre a Terra, e que, se disto sai às vezes, é para refutar aqueles que não pensam como ele, mas que suas excursões fora do real serão de curta duração. Compreenderíamos que assim o fosse com o jornal exclusivamente científico, tratando de matérias especiais; é evidente que seria intempestivo falar de espiritualidade, de psicologia ou de teogonia a propósito de mecânica, de química, de física, de cálculos matemáticos, de comércio ou de indústria; mas desde que faz entrar em seu programa a filosofia, não poderia enchê-la sem abordar as questões metafísicas. Se bem que a palavra filosofia seja muito elástica, e que haja sido singularmente desviada de sua acepção etimológica, implica, por sua própria essência, pesquisas e estudos que não são exclusivamente materiais.
 
O conselho de Helvetius: "É preciso ter a coragem de ignorar o que não se pode saber," é muito sábio, e se dirige sobretudo aos sábios presunçosos que pensam que nada pode ser ocultado ao homem, e o que não sabem ou não compreendem não deve existir. Seria mais justo, no entanto, dizer: "É preciso ter a coragem de confessar a sua ignorância sobre o que não se sabe." Tal como está formulado, se poderia traduzi-lo assim: "É preciso ter a coragem de conservara sua ignorância," de onde esta consequência: "É inútil procurar saber o que não se sabe." Sem dúvida, há coisas que o homem não saberá jamais enquanto estiver sobre a Terra, porque, qualquer que seja a sua presunção, a Humanidade está ainda no estado de adolescência; mas quem ousaria pôr limites absolutos àquilo que pode saber? Uma vez que se sabe disto infinitamente mais hoje do que os homens dos tempos primitivos, porque, mais tarde, não se saberia mais disto do que se sabe agora? É o que não podem compreender aqueles que não admitem a perpetuidade e a perfectibilidade do ser espiritual. Muitos dizem a si mesmos: Estou no cume da escala intelectual; o que não vejo e não compreendo, ninguém pode vê-lo e compreendê-lo.
 
No parágrafo reportado acima e relativo ao jornal a Livre consciência, está dito: "Não compreendemos mais a livre consciência que o livre pensamento com um limite dogmático assinalado antecipadamente. Quando se declara discípulo da ciência, é irracional colocar como um dogma uma crença qualquer impossível de se provar cientificamente. A liberdade limitada da sorte não é a liberdade." Toda doutrina está nestas palavras; a profissão de fé é limpa e categórica. Assim, porque Deus não pode ser demonstrado por uma equação algébrica, que a alma não é apreensível com a ajuda de um reativo, é absurdo crer em Deus e na alma. Todo discípulo da ciência deve, consequentemente, ser ateu e materialista. Mas, por não sair da materialidade, a ciência é sempre infalível em suas demonstrações? Não se a tem, muitas vezes, visto dar por verdades o que mais tarde foi reconhecido ser erros, e vice-versa? Não foi em nome da ciência que o sistema de Fulton foi declarado uma quimera?
 
Antes de conhecer a lei da gravitação, não demonstrou ela cientificamente que não podia haver antípodas? Antes de conhecer a da eletricidade, não demonstrou ela por a mais b que não existia velocidade capaz de transmitir um despacho a quinhentas léguas em alguns minutos?
 
Tinha-se muito experimentado a luz, e, no entanto, há poucos anos ainda, quem teria suspeitado os prodígios da fotografia? No entanto, não foram os sábios oficiais que fizeram esta prodigiosa descoberta, não mais do que as do telégrafo elétrico e das máquinas a vapor. A ciência conhece ainda hoje todas as leis da Natureza? Sabe ela somente todos os recursos que se podem tirar das leis conhecidas? Quem ousaria dize-lo?
 
Não se pode que um dia o conhecimento de novas leis torne a vida extra corpórea tão evidente, tão racional, tão inteligente quanto a dos antípodas? Um tal resultado interrompendo todas as incertezas, seria, pois, a desdenhar? Seria menos importante, para a Humanidade, do que a descoberta de um novo continente, de um novo planeta, de um novo engenho de destruição? Pois bem! esta hipótese se tornou realidade; é ao Espiritismo que se o deve, e é graças a ele que tantas pessoas que acreditavam morrer uma vez por todas, estão agora certas de viverem sempre.
 
Falamos da força da gravitação, essa força que rege o Universo, desde o grão de areia até os mundos; mas quem a viu, quem a pode segui-la, analisá-la? Em que consiste ela? Qual é a sua natureza, a sua causa primeira? Ninguém o sabe, e, no entanto, ninguém dela duvida hoje. Como se a reconheceu? Por seus efeitos; dos efeitos se concluiu a causa; fez-se mais: calculando a força dos efeitos, calculou-se a força da causa que jamais se viu. Ocorre o mesmo com Deus e com a vida espiritual que se julga também por seus efeitos, segundo este axioma: "Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente. A força da causa inteligente está em razão da grandeza do efeito." Crerem Deus e na vida espiritual não é, pois, uma crença puramente gratuita, mas um resultado da observação tão positiva quanto aquela que faz crer na força da gravitação.
 
Depois, na falta de provas materiais, concorrentemente a estas, a filosofia não admite as provas morais que, às vezes, têm tanto e mais valor do que as outras? Vós, que não tendes por verdadeiro senão o que é provado materialmente, que diríeis se, estando injustamente acusado de um crime do qual todas as aparências seriam contra vós, assim como se vê frequentemente a injustiça, os juízes não tivessem em nenhuma conta as provas morais que seriam em vosso favor? Não serieis o primeiro a invocá-las? a fazer valer sua preponderância sobre os efeitos puramente materiais que podem iludir? a provar que os sentidos podem enganar os mais clarividentes? Se, pois, admitis que as provas morais devam pesar na balança de um julgamento, não serieis consequente convosco mesmo negando-lhes o valor quando se trata de fazer uma opinião sobre as coisas que, pela sua natureza, escapam à materialidade.
 
O que de mais livre, de mais independente, de menos apreensível por sua própria essência, do que o pensamento? E, no entanto, eis uma escola que pretende emancipá-lo acorrentando-o à matéria; que avanço, em nome da razão, que o pensamento circunscrito sobre as coisas terrestres é mais livre do que aquele que se lança no infinito, e quer ver além do horizonte material! Tanto valeria dizer que o prisioneiro que não pode dar senão alguns passos em seu cárcere é mais livre do que aquele que corta os campos. Se, crer nas coisas do mundo espiritual que é infinito, é não ser livre, vós o sois cem vezes menos, vós que vos circunscreveis no limite estreito do tangível, que dizeis ao pensamento: Tu não sairás do círculo que te traçamos, e se t u dele sais não és mais o pensamento sadio, mas a loucura, a tolice, o disparate, porque só a nós pertence discernir o falso do verdadeiro.
 
A isto o espiritualismo responde: Nós formamos a imensa maioria dos homens da qual sois apenas a milionésima parte; com que direito vos atribuís o monopólio da razão? Quereis, dizeis, emancipar nossas ideias em nos impondo as vossas? Mas não nos ensinais nada; sabemos o que sabeis; cremos sem restrição em tudo o que credes: na matéria e no valor das provas tangíveis, e mais do que vós: em alguma coisa fora da matéria; numa força inteligente superior à Humanidade; em causas inapreciáveis pelos sentidos, mas perceptíveis pelo pensamento; na perpetuidade da vida espiritual que limitais à duração da vida do corpo. Nossas ideias são, pois, infinitamente mais amplas do que as vossas; ao passo que circunscreveis vosso ponto de vista, o nosso abarca os horizontes sem limites. Como aquele que concentra seu pensamento sobre uma ordem determinada de fatos, que coloca assim um ponto de parada aos seus movimentos intelectuais, às suas investigações, talvez pretender emancipar aquele que se move sem entraves, e cujo pensamento sonda as profundezas do infinito?
 
Restringir o campo de exploração do pensamento é restringir a sua liberdade, e é o que fazeis. Quereis, dissestes ainda, arrancar o mundo do jugo das crenças dogmáticas; fazei pelo menos uma distinção entre estas crenças? Não, porque confundis na mesma reprovação tudo o que não é do domínio exclusivo da ciência, tudo o que não se vê pelos olhos do corpo, em uma palavra, tudo o que é de essência espiritual, por consequência Deus, a alma e a vida futura. Mas se toda crença espiritual é um entrave à liberdade de pensar, ocorre o mesmo com toda crença material; aquele que crê que uma coisa é vermelha, porque a vê vermelha, não é livre para crê-la verde. Desde que o pensamento é detido por uma convicção qualquer, ele não é mais livre; para ser consequente com a vossa teoria, a liberdade absoluta consistiria em nada crer do todo, mesmo na sua própria existência, porque isto seria ainda uma restrição; mas então em que se tornaria o pensamento?
 
Considerado deste ponto de vista, o livre pensamento seria um contrassenso. Ele deve se entender num sentido mais amplo e mais verdadeiro; quer dizer, do uso livre que se faz da faculdade de pensar, e não na sua aplicação em uma ordem qualquer de ideias. Ele consiste, não em crer numa coisa antes do que numa outra, nem em excluir tal ou tal crença, mas na liberdade absoluta de escolha das crenças. É, pois, abusivamente que alguns dele fazem a aplicação exclusiva às ideias ante-espiritualistas. Toda ideia racional, que não é nem imposta, nem encadeada cegamente à de outrem, mas que é voluntariamente adotada em virtude do julgamento pessoal, é um pensamento livre, quer seja religioso, político ou filosófico.
 
O livre pensamento, na sua acepção mais ampla, significa: livre exame, liberdade de consciência, fé raciocinada; ele simboliza a emancipação intelectual, a independência moral, complemento da independência física; ele não quer mais escravos do pensamento do que escravos do corpo, porque o que caracteriza o livre pensador é que ele pensa por si mesmo e não pelos outros, em outras palavras, que sua opinião lhe pertence particularmente. Pode, pois, haver livres pensadores em todas as opiniões e em todas as crenças. Neste sentido, o livre pensamento eleva a dignidade do homem; dele faz um ser ativo, inteligente, em lugar de uma máquina de crer.
 
No sentido exclusivo que alguns lhe dão, em lugar de emancipar o espírito, ele restringe a sua atividade, faz dele escravo da matéria, os fanáticos da incredulidade fazem, num sentido, o que os fanáticos da fé cega fazem num outro; quando estes dizem: Para ser segundo Deus é preciso crer em tudo o que nós cremos; fora de nossa fé não há salvação, os outros dizem: Para ser segundo a razão, é preciso pensar como nós, não crer senão no que cremos; fora dos limites que traçamos à crença, não há nem liberdade nem bom senso, doutrina que se formula por este paradoxo: Vosso espírito não é livre senão com a condição de não crer naquilo que quer, o que vem a dizer a um indivíduo: Tu és o mais livre de todos os homens, com a condição de não ir mais longe do que o fim da corda à qual vos prendemos.
 
Seguramente não contestamos aos incrédulos o direito de não crer em nada senão na matéria, mas convir-se-á que há singulares contradições em sua pretensão de se atribuir o monopólio da liberdade de pensar. Dissemos que pela qualidade de livre pensador certas pessoas procuram atenuar o que a incredulidade absoluta tem de repulsivo para a opinião das massas; suponhamos, com efeito, que um jornal se intitule abertamente: o Athée, o Incrédulo ou o Matérialiste, pode-se julgar da impressão que esse título faria sobre o público; mas que abrigue estas mesmas doutrinas sob a capa do livre pensador, a esta bandeira se diz: É a bandeira da emancipação moral; deve ser o da liberdade de consciência e, sobretudo da tolerância; vejamos. Vê-se que não é preciso sempre reportá-lo à etiqueta.
 
Estar-se-ia em erro, de resto, assustando-se além da medida das consequências de certas doutrinas; elas podem momentaneamente seduzir alguns indivíduos, mas jamais seduzirão as massas que lhe são opostas pelo instinto e pela necessidade. É útil que todos os sistemas se mostrem à luz, para que cada um possa deles julgar o forte e o fraco, e, em virtude do direito de livre exame, possa adotá-los ou rejeitá-los com conhecimento de causa. Quando as utopias forem vistas em ação, e que terão provado sua impotência, elas cairão para não mais se levantar. Por seu próprio exagero, elas movimentam a sociedade e preparam a renovação. Está ainda aí um sinal dos tempos.
 
O Espiritismo é, como alguns o pensam, uma nova fé cega substituindo a uma outra fé cega; de outro modo dito, uma nova escravidão do pensamento sob uma nova forma? Para crê-lo é preciso ignorar-lhe os primeiros elementos. Com efeito, coloca como princípio que antes de crer é preciso compreender; ora, para compreender é preciso fazer uso de seu julgamento; eis porque ele procura se dar conta de tudo antes de nada admitir, em saber o porquê e o como de cada coisa; também os Espíritas são mais suscetíveis do que os outros com relação aos fenômenos que saem do círculo das observações habituais. Ele não repousa sobre nenhuma teoria preconcebida e hipotética, mas sobre a experiência e a observação dos fatos; em lugar de dizer: "Crede primeiro, e compreendais em seguida, se o puderdes," ele diz: Compreendei primeiro e crereis em seguida se o quiserdes." Ele não se impõe a ninguém; diz a todos: "Vede, observai, comparai e vinde a nós livremente se isto vos convém." Assim falando, ele se candidata e corta as chances da concorrência. Se muitos vão a ele, é que os satisfaz muito, mas ninguém o aceita de olhos fechados. Àqueles que não o aceitam, ele diz: "Sois livres, e não vos quero; tudo o que vos peço, é de deixar-me a minha liberdade, como vos deixo a vossa. Se procurais me afastar, pelo medo de que vos suplante, é que não estais muito seguros de vós."
 
O Espiritismo não procurando afastar nenhum dos concorrentes na liça aberta às ideias que devem prevalecer no mundo regenerado, e nas condições do verdadeiro livre pensamento; não admitindo nenhuma teoria que não esteja fundada sobre a observação, ele está, ao mesmo tempo nas do mais rigoroso positivismo; tem, enfim, sobre seus adversários de duas opiniões contrárias extremas, a vantagem da tolerância.
 
Nota. Algumas pessoas nos censuraram pelas explicações teóricas que, desde o princípio, procuramos dar dos fenômenos espíritas. Essas explicações, baseadas sobre uma observação atenta, remontando dos efeitos à causa, provavam, de uma parte, que queríamos nos dar conta e não crer nelas cegamente; de outra, que queríamos fazer do Espiritismo uma ciência de raciocínio e não de credulidade. Por essas explicações que o tempo desenvolveu, mas que consagrou em princípio, porque nenhuma foi contraditada pela experiência, os Espíritas acreditaram porque compreenderam, e não é duvidoso que é a isto que se deve atribuir o crescimento rápido do número dos adeptos sérios. É a essas explicações que o Espiritismo deve por ter saído do domínio do maravilhoso e de estar ligado às ciências positivas; por elas demonstrou aos incrédulos que isto não é uma obra de imaginação; sem elas estaríamos ainda para compreender os fenômenos que surgem a cada dia. Era urgente colocar, desde o princípio, o Espiritismo sobre o seu verdadeiro terreno. A teoria fundada sobre a experiência foi o freio que impediu a credulidade supersticiosa, tanto quanto a malevolência, de fazê-lo desviar de seu caminho. Porque aqueles que nos censuram por termos tomado a iniciativa, não a tomaram eles mesmos?
 
Revista Espírita – fevereiro de 1867