quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Doutrina Espírita e o Elemento Humano


Por Deolindo Amorim

A seara espírita é um campo de experiências. Seria ilusão esperar que todos quantos se engajam no trabalho espírita, nesta ou naquela faixa, por mais ardoroso que seja o desejo de servir, já estejam completamente desligados de uns tantos hábitos, contraídos nos ambientes de onde vieram. Não. As tendências religiosas de origem, os cacoetes adquiridos na profissão ou na vida social e os impulsos do próprio temperamento não se modificam de um momento para outro. O fato, portanto, de ingressarmos nas fileiras espíritas, seja pela dor, seja pela reflexão profunda ou por outro motivo, não significa que tenhamos deixado lá fora todas as propensões ou, afinal, toda a bagagem que nos acompanha. Não se diz a toda hora, e é certo, que o meio espírita é uma escola? Escola pressupõe aprendizado e melhoramento.

Como a Doutrina Espírita recebe adesões de pessoas oriundas de todas as classes sociais, assim como de todas as correntes religiosas e de todos os níveis da escala humana, as frentes de trabalho no movimento espírita, quer no campo assistencial, quer no campo doutrinário, mediúnico etc., reúnem elementos muito variados entre si, com temperamentos, concepções e costumes em tudo e por tudo diferentes. É natural, até certo ponto, que haja alguns problemas por falta de entrosamento. Todos, afinal, querem trabalhar e todos são necessários à realização da obra comum. Mas nem todos sempre se identificam nas ideias, nos modos de conduzir as tarefas e assim por diante. Todos — é bom frisar — desejam contribuir com sua parcela de esforço. E todos devem ter oportunidades de prestar serviço.

O problema não está propriamente no fato de haver desigualdades individuais por causa da formação, estrutura psicológica, educação, cultura etc., mas na falta, às vezes, de tato para contornar as dificuldades entre grupos heterogêneos e aproveitar bem o que cada qual possa dar de si a despeito das divergências ou até mesmo de atritos passageiros.

Nos grupos mais reduzidos, como é o caso de uma diretoria de cinco ou seis pessoas, muitas e muitas vezes há incompatibilidades temperamentais e desentendimentos ocasionais, pois, como ensina a sabedoria popular, cada cabeça, cada sentença!

Homogeneidade absoluta não é mesmo possível com um material humano ainda em processo reencarnatório de melhoramento. Mas, é com esse material humano, sujeito aos altos e baixos da experiência terrena, que se realizam as grandes obras. Se o nosso movimento tivesse de esperar que aparecessem somente trabalhadores já depurados de seus velhos compromissos ou sem arestas contundentes, nada teria sido feito até agora.

Há pessoas, no entanto, que ainda não compreendem a nossa situação e, por isso, de quando em quando fazem esta pergunta: – Mas, existem dessas coisas no meio espírita? E por que não? O meio espírita não é uma comunidade de anjos, mas de gente de carne e osso, com os seus defeitos e suas qualidades. É verdade que certos casos já não deviam ocorrer em nosso meio. São casos realmente discrepantes, de projeção, campanhas anônimas etc. etc. Isso prova que ainda existe muita fraqueza humana do lado de cá, tanto quanto em outras atividades humanas.

Não esperemos, pois, que haja um ajustamento perfeito em todos os campos de trabalho espírita, já que as criaturas humanas são mesmo desiguais. Entretanto, pela experiência já vivida e pelo que já se aprendeu na Doutrina até agora, certas dificuldades, causadas pela incompreensão humana, já não deveriam ocorrer entre nós. Afinal, ninguém é perfeito, ninguém chega à seara espírita sem influências do passado, sem alguns prejuízos da educação ou do ambiente de origem. Mas a casa espírita é uma escola. Sim, escola onde cada qual deve se esforçar para melhorar.

Afinal de contas, o que estamos fazendo no meio espírita se ainda estamos presos às mesmas paixões ou se ainda estamos presos às mesmas tendências negativas de outrora? Se ao cabo de tudo, nada mudou em nossa vida, pois continuamos com as mesmas ideias, os mesmos sentimentos, os mesmos hábitos, evidentemente não incorporamos bem os princípios espíritas ao dinamismo de nossa vivência cotidiana. É assunto para reflexões mais sérias.



Fonte: “Ponderações Doutrinárias”, coletânea de artigos publicada pela Federação Espírita do Paraná (FEP).


Deolindo Amorim nasceu na Bahia em 1906 e desencarnou no Rio de Janeiro, em 1984. É considerado, ao lado de Carlos Imbassahy e Herculano Pires, um dos maiores pensadores espíritas das Américas. De estilo professoral, extremamente didático e elegante, Deolindo foi um dos maiores divulgadores do espiritismo como cultura e voltado para a análise de questões da atualidade. Fundou o Instituto de Cultura Espírita do Brasil (Iceb), foi um dos idealizadores da Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas (Abrajee) e graças ao seu empenho, em conjunto com a Liga Espírita do Brasil, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1949, o II Congresso Espírita Pan-Americano.


Obras: Espiritismo e Criminologia; O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas; Africanismo e Espiritismo; O Espiritismo e os Problemas Humanos; Ideias e Reminiscências Espíritas; Allan Kardec, o Homem e o Meio, dentre outras.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O ESPIRITISMO SEM OS ESPÍRITOS


(Revista Espírita, abril de 1866)

 

Ultimamente vimos uma seita tentar se formar, arvorando como bandeira a negação da prece. Acolhida inicialmente por um sentimento geral de reprovação, não vingou. Os homens e os Espíritos se uniram para repelir uma doutrina que era, ao mesmo tempo, uma ingratidão e uma revolta contra a Providência. Isto não era difícil porque, chocando o sentimento íntimo da imensa maioria, ela carregava em si o seu princípio destruidor. (Revista de janeiro de 1866).

Eis agora uma outra que se ensaia num novo terreno. Tem por divisa: Nada de comunicações dos Espíritos. É muito singular que esta opinião seja preconizada por alguns daqueles que outrora exaltavam a importância e a sublimidade dos ensinamentos espíritas e que se gloriavam do que eles próprios recebiam como médiuns. Terá ela mais chance de sucesso que a precedente? É isto que vamos examinar em poucas palavras.

Essa doutrina, se podemos dar tal nome a uma opinião restrita a algumas pessoas, se fundamenta nos dados seguintes:

“Os Espíritos que se comunicam não são senão Espíritos ordinários que até hoje não nos ensinaram nenhuma verdade nova, e que provam a sua incapacidade, não saindo das banalidades da moral. O critério que pretendem estabelecer sobre a concordância de seu ensino é ilusório, por força de sua insuficiência. É ao homem que cabe sondar os grandes mistérios da Natureza e submeter o que eles dizem ao controle de sua própria razão. Nada nos ensinando as suas comunicações, nós as proscrevemos de nossas reuniões. Discutiremos entre nós; buscaremos e decidiremos, em nossa sabedoria, os princípios que devem ser aceitos ou rejeitados, sem recorrer ao assentimento dos Espíritos.”

Notemos que não se trata de negar o fato das manifestações, mas de estabelecer a superioridade do julgamento do homem, ou de alguns homens, sobre o dos Espíritos; numa palavra, de separar o Espiritismo do ensino dos Espíritos, pois as instruções destes últimos estariam abaixo do que pode a inteligência dos homens.

Essa doutrina conduz a uma singular consequência, que não daria uma alta ideia da superioridade da lógica do homem sobre a dos Espíritos. Graças a estes últimos, sabemos que os da ordem mais elevada pertenceram à Humanidade corporal que eles ultrapassaram há muito tempo, como o general ultrapassou a classe do soldado da qual ele saiu. Sem os Espíritos, ainda estaríamos na crença de que os anjos são criaturas privilegiadas e os demônios criaturas predestinadas ao mal para a eternidade. “Não, dirão, porque houve homens que combateram essa ideia.” Que seja, mas quem eram esses homens senão Espíritos encarnados? Que influência teve a sua opinião isolada sobre a crença das massas? Perguntai ao primeiro que chegar se conhece ao menos de nome a maioria desses grandes filósofos? Ao passo que vindo os Espíritos a todos os cantos da Terra manifestar-se ao mais humilde como ao mais poderoso, a verdade propagou-se com a rapidez do relâmpago.

Podemos dividir os Espíritos em duas grandes categorias: aqueles que, depois de terem atingido o mais alto ponto da escala, deixaram definitivamente os mundos materiais, e aqueles que, pela lei da reencarnação, ainda pertencem ao turbilhão da Humanidade terrena.

 Admitamos que só estes últimos tenham o direito de comunicar-se com os homens, o que é uma hipótese: Entre eles há aqueles que em vida foram homens esclarecidos, cuja opinião tem autoridade, e que a gente sentir-se-ia feliz de consultar, se ainda fossem vivos. Ora, da doutrina acima resultaria que esses mesmos homens superiores tornaram-se nulidades ou mediocridades ao passar para o mundo dos Espíritos, incapazes de nos dar uma instrução de algum valor, ao passo que a gente se inclinaria respeitosamente diante deles se se apresentassem em carne e osso nas mesmas assembleias onde se recusam a escutá-los como Espíritos.

Disso resulta ainda que Pascal, por exemplo, deixou de ser uma luz quando passou a ser Espírito, mas que se ele reencarnasse em Pedro ou Paulo, necessariamente com o mesmo gênio, porquanto nada teria perdido, ele seria um oráculo. Esta consequência é tão rigorosa que os partidários desse sistema admitem a reencarnação como uma das maiores verdades. Enfim, será preciso concluir que aqueles que colocam de muito boa-fé, como supomos, sua própria inteligência tão acima da dos Espíritos, serão eles próprios nulidades ou mediocridades, cuja opinião não terá valor, de sorte que seria preciso crer no que eles dizem enquanto estão vivos, e não crer amanhã, quando estiverem mortos, mesmo que viessem dizer a mesma coisa, e muito menos ainda se disserem que se enganaram.

Sei que objetam a grande dificuldade da constatação da identidade. Essa questão já foi amplamente tratada, de modo que é supérfluo a ela voltar. Certamente não podemos saber, por uma prova material, se o Espírito que se apresenta sob o nome de Pascal é realmente o do grande Pascal. Que nos importa, se ele diz boas coisas? Cabe-nos pesar o valor de suas instruções, não pela forma da linguagem, que sabemos por vezes marcada pelo cunho da inferioridade do instrumento, mas pela grandeza e pela sabedoria dos pensamentos. Um grande Espírito que se comunica por um médium pouco letrado é como um hábil calígrafo que se serve de uma pena ruim. O conjunto da escrita terá o cunho de seu talento, mas os detalhes da execução, que dele não dependem, serão imperfeitos.

Jamais o Espiritismo disse que era preciso fazer abnegação de seu julgamento e submeter-se cegamente ao dizer dos Espíritos; são os próprios Espíritos que nos dizem para submeter todas as suas palavras ao cadinho da lógica, ao passo que certos encarnados dizem: “Não creiais senão no que dizemos e não creiais no que dizem os Espíritos.” Ora, como a razão individual está sujeita ao erro, e o homem, muito geralmente, é levado a tomar sua própria razão e suas ideias como a única expressão da verdade, aquele que não tem a orgulhosa pretensão de se julgar infalível a submete à apreciação da maioria. Por isto é tido como abdicando de sua opinião? Absolutamente. Ele está perfeitamente livre de crer que só ele tem razão contra todos, mas isto não impedirá a opinião da maioria de prevalecer e de ter, em definitivo, mais autoridade que a opinião de um só ou de alguns.

Examinemos agora a questão sob outro ponto de vista. Quem fez o Espiritismo? É uma concepção humana pessoal? Todo mundo sabe que é o contrário. O Espiritismo é o resultado do ensinamento dos Espíritos, de tal sorte que sem as comunicações dos Espíritos não haveria Espiritismo. Se a Doutrina Espírita fosse uma simples teoria filosófica nascida de um cérebro humano, ela não teria senão o valor de uma opinião pessoal; saída da universalidade do ensino dos Espíritos, tem o valor de uma obra coletiva, e é por isto mesmo que em tão pouco tempo se propagou por toda a Terra, cada um recebendo por si mesmo, ou por suas relações íntimas, instruções idênticas e a prova da realidade das manifestações.

Pois bem! É em presença deste resultado patente, material, que se tenta erigir em sistema a inutilidade das comunicações dos Espíritos. Convenhamos que se elas não tivessem a popularidade que adquiriram, não as atacariam, e que é a prodigiosa vulgarização dessas ideias que suscita tantos adversários ao Espiritismo. Os que hoje rejeitam as comunicações não parecem essas crianças ingratas que negam e desprezam os seus pais? Não é ingratidão para com os Espíritos, a quem devem o que sabem? Não é servir-se do que eles ensinaram para combatê-los; voltar contra eles, contra seus próprios pais, as armas que eles nos deram? Entre os Espíritos que se manifestam não está o Espírito de um pai, de uma mãe, de seres que nos são os mais caros, dos quais se recebem essas tocantes instruções que vão diretamente ao coração? Não é a eles que devemos o ter sido arrancados da incredulidade, das torturas da dúvida sobre o futuro? E é quando se goza do benefício que se desconhece a mão benfeitora?

Que dizer dos que, tomando sua opinião pela de todo mundo, afirmam seriamente que agora em parte alguma se querem comunicações? Estranha ilusão que um olhar lançado em torno deles bastaria para fazer desvanecer-se. Da parte deles, que devem pensar os Espíritos que assistem às reuniões onde se discute se se deve condescender em escutá-los, se se deve ou não excepcionalmente permitir-lhes a palavra para agradar aos que têm a fraqueza de dar importância às suas instruções? Lá se encontram sem dúvida Espíritos ante os quais cairiam de joelhos se nesse momento eles se deixassem ver. Já pensaram no preço que se poderia pagar por tal ingratidão?

Tendo os Espíritos a liberdade de comunicar-se, independentemente de seu grau de saber, disso resulta uma grande diversidade no valor das comunicações, como nos escritos, num povo em que todo mundo tem a liberdade de escrever, e onde, certamente, nem todas as produções literárias são obras-primas. Segundo as qualidades individuais dos Espíritos, há, pois, comunicações boas pelo fundo e pela forma, e outras, enfim, que nada valem, nem pelo fundo nem pela forma. Cabe-nos escolher. Rejeitá-las todas porque algumas são más, não seria mais racional do que proscrever todas as publicações porque há escritores que produzem vulgaridades. Os melhores escritores, os maiores gênios, não têm coisas fracas em suas obras? Não se fazem seleções do que eles produziram de melhor? Façamos o mesmo em relação à produção dos Espíritos; aproveitemos o que há de bom e rejeitemos o que é mau; mas, para arrancar o joio, não arranquemos o bom grão.

Consideremos, pois, o mundo dos Espíritos como um duplo do mundo corporal, como uma fração da Humanidade e digamos que não devemos desdenhar ouvi-los, agora que estão desencarnados, pois não o teríamos feito quando encarnados. Eles estão sempre em nosso meio, como outrora; apenas estão atrás da cortina e não à frente, eis toda a diferença.

Mas, perguntarão, qual o alcance do ensino dos Espíritos, mesmo no que há de bom, se eles não ultrapassam o que os homens podem saber por si mesmos? É bem certo que eles não nos ensinam nada mais? No seu estado de Espírito, eles não veem o que não podemos ver? Sem eles, conheceríamos o seu estado, sua maneira de ser, suas sensações? Conheceríamos, como hoje conhecemos, esse mundo onde talvez estejamos amanhã? Se esse mundo não tem para nós os mesmos terrores, se encaramos sem pavor a passagem que a ele conduz, não é a eles que o devemos? Esse mundo está completamente explorado? Cada dia não nos revela uma nova face dele? E nada significa saber para onde iremos e o que poderemos ser ao sair daqui? Outrora lá entrávamos tateando e tremendo, como num abismo sem fundo; agora esse abismo é resplendente de luz e nele entramos alegres. E ousam dizer que o Espiritismo nada ensinou! (Revista Espírita, agosto de 1865: “O que ensina o Espiritismo”).

Sem dúvida o ensino dos Espíritos tem limites. Não se lhe deve pedir senão o que ele pode dar, o que está na sua essência, no seu objetivo providencial; e ele dá muito a quem sabe buscar. Mas tal como ele é, já fizemos todas as suas aplicações? Antes de lhe pedir mais, sondamos as profundezas do horizonte que nos descortina? Quanto ao seu alcance, ele se afirma por um fato material, patente, gigantesco, inaudito nos fastos da história: é que ainda em sua aurora, ele já revoluciona o mundo e abala as forças da Terra. Que homem teria tido tal poder?

O Espiritismo tende para a reforma da Humanidade pela caridade. Não é, pois, de admirar que os Espíritos preguem a caridade sem cessar; eles a pregarão ainda por tanto tempo quanto for necessário para desarraigar o orgulho e o egoísmo do coração do homem. Se alguns acham as comunicações inúteis, porque repetem incessantemente as lições de moral, devem ser felicitados, pois são bastante perfeitos para não mais necessitarem delas, mas eles devem pensar que os que não têm tanta confiança em seu próprio mérito e que desejam se melhorar, não se cansam de receber bons conselhos. Não busqueis, pois, tirar-lhes esse consolo.

Esta doutrina tem chance de prevalecer? Como dissemos, as comunicações dos Espíritos fundamentaram o Espiritismo. Repeli-las depois de havê-las aclamado é querer solapar o Espiritismo pela base, tirar-lhe o alicerce. Tal não pode ser o pensamento dos Espíritas sérios e devotados, porque seria absolutamente como alguém que se dissesse cristão negar o valor dos ensinamentos do Cristo, sob o pretexto que sua moral é idêntica à de Platão. Foi nessas comunicações que os espíritas encontraram a alegria, a consolação, a esperança. Foi por elas que compreenderam a necessidade do bem, da resignação, da submissão à vontade de Deus; é por elas que suportam com coragem as vicissitudes da vida; por elas que não há mais separação real entre eles e os objetos de suas mais ternas afeições. Não é enganar-se com o coração humano crer que ele possa renunciar a uma crença que faz a felicidade?

Repetimos aqui o que dissemos a propósito da prece: Se o Espiritismo deve ganhar em influência, é aumentando a soma das satisfações morais que proporciona. Que aqueles que o acham insuficiente tal qual é se esforcem por dar mais que ele; mas não será dando menos, tirando o que faz o seu encanto, sua força e sua popularidade que eles o suplantarão.

Allan Kardec

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O Existencialismo Hominal à Luz da Filosofia Espírita


Por Humberto Mariotti


1.     SOBRE O “SER E O NÃO SER”


“To be or not to be” é o dilema filosófico e religioso apresentado por Hamlet ao refletir contemplando uma caveira, pois nele se resume todo o drama existencial do homem. Se o individuo humano é um ser destinado a dissolver-se no nada, os valores morais e a significação dos processos espirituais e sociais não têm nenhuma razão lógica para serem considerados como fatores positivos da Humanidade, uma vez que unicamente o que se destacaria nele seria um existir transitório, colocado entre dois enigmas insolúveis: o berço e a sepultura.


Entretanto, o Ser está destinado a ter império sobre a existência; sua natureza de essência imaterial não está destinada a diluir-se na noite do nada já que possui uma transcendentalidade que o aproxima do imortal para fazê-lo penetrar definitivamente no eterno.


O Ser é porque não há um existir para o nada. Se o Ser é um ato espiritual, seu destino consiste em fazer-se consciente de sua invulnerabilidade frente à morte. Se o Ser nasce é porque já existia no seio da vida como uma essência condicionada pela existência espiritual. Não haveria Ser se seu existir estivesse destinado a ruir como um castelo de baralho na obscuridade do irracional e do nada. Mas o “ser ou não ser” de Hamlet, profunda problemática para a filosofia de todos os tempos, foi resolvido pelo gênio mediúnico da doutrina espírita. O Ser foi confirmado como Espírito imortal e, por conseguinte, como entidade que não foi superada pela morte, razão pela qual se revelou como entidade viva e comunicante.


Toda filosofia niilista para ser rebaixada no que respeita ao nada, sobre o qual se assenta, necessita de uma demonstração existencial mediúnica que lhe faça ver a vida vencendo a morte. Pois que o Ser é, existe e está destinado a vencer as limitações da morte para revelar-se ante a inteligência como uma Existência Viva, cuja característica moral e psicológica não se verá alterada no mínimo que seja pelo ato de morrer que o aguarda. Recordemos que ato de morrer se transforma com a filosofia espírita em ato de ser, o que quer dizer que esse ato resulta em uma transfiguração do homem até mostrar-nos a verdadeira imagem do indivíduo. A morte à luz do Espiritismo se transforma na desencarnação e o ato de nascer em encarnação e reencarnação.


O Ser, em sua realidade existencial encarna e desencarna, o que significa que o nascer e o morrer da antiga visão filosófica e religiosa é superada pela realidade do Ser imortal que, através da encarnação e desencarnação, passa através da história para dar cumprimento à noção espírita que nos diz: “Nascer, morrer e renascer, tai é a lei”. De maneira, pois, que o “ser e o não ser” de Hamlet, — se bem que, por certo, segue espicaçando um grande setor da antropologia moderna — foi amplamente elucidado, não apenas pela razão filosófica, mas também por “atos existenciais” que se revelam por intermédio do fenômeno mediúnico.


O dilema de “ser ou não ser” foi transfigurado por essa brecha aberta pelos espíritas, brecha que nos mostra a verdadeira natureza do Espírito e da Vida. A reflexão filosófica deverá penetrar nesses novos estágios do conhecimento e reconhecer que todo ato existencial e todo intento cultural de conhecer o homem e o mundo, só se tornará um fato quando se reconheça positivamente que o Ser é uma realidade existencial sem perigo de ser aniquilado, nem pela morte nem pelo nada eternos.


2. SOBRE O “CRER OU NÃO CRER”


Allan Kardec, no capítulo “O Futuro e o Nada” de seu livro “A Gênese”, revela-se-nos como Hamlet, um notável filósofo existencial quando diz: “Ser ou não ser: tal é a alternativa”, o que nos apresenta esta outra dramática interrogação: “crer ou não crer”? Com efeito, se o homem não crê em algo transcendental, não crerá tão pouco em seu próprio ser e existir, já que o Ser e Crer são dois fatos que se interpenetram reciprocamente.


Se o Ser não é uma realidade espiritual, o ato de crer resulta impossível, pois só poderá crer quem está seguro de seu Ser como entidade existencial imortal. Então, crê-se na própria existência e na existência dos outros. O Ser se reconhece como realidade espiritual e, não obstante as diversas finalidades de sua angústia, na finalidade de sua dor, transcende toda ideia da morte e do nada.


O Ser se afirma como entidade lógica ante as realidades contrárias porque se sente Vida e Ser, reconhece que seu drama existencial está ligado ao mistério do tempo, através do qual se desenrola sua essência, eterna e palingenésica. William James falou da “necessidade de crer”. Em realidade, o ato de crer é o que dá ao homem personalidade moral e fé no destino que lhe compete viver como Ser existencial.


Se o homem crê, estará a salvo do niilismo e de toda morte espiritual. Crer é, pois, possuir o dom da fé porque somente nessa condição se poderá olhar a existência como Ser e Transcender, e reconhecer-se-á que o Crer conflui no ser e existir eternos. Se a “fé verdadeira pode olhar a razão face a face em todas as idades da Humanidade”, essa fé é a que deverá se enraizar no Ser para sua “salvação” frente ao nada. E a fé aparece quando o Espírito se reconhece a si mesmo como uma realidade indestrutível, por cuja razão pode chegar a crer com toda intensidade na finalidade inteligente da Existência e do Universo.


Ser e Crer são duas realidades existenciais que a filosofia universitária não alcança confirmar firmemente sobre fatos experimentais. Apenas a filosofia espírita pode dar consistência real ao Ser e ao Crer, ao relacionar a inteligência encarnada com a desencarnada.


Crer na Vida, no Espírito e em Deus, através do saber espírita, é viver um crer comunicante com a verdade. Surge na alma do Homem uma fé inamovível, a qual dar-lhe-á serenidade e segurança, ao reconhecer-se como Ser inamovível, a qual lhe dará serenidade e segurança ao reconhecer-se como ser encarnado. O drama existencial será para ele como uma consequência da lei moral que determina sua condição palingenésica. Vem daí que o Crer se converterá em Fé e toda contradição existencial experimentada pelo Ser se converterá em vivência criadora.


A fé e o crer espíritas representam dois atos espirituais que colocam o Ser em planos mais sutis e reais para o entendimento filosófico e religioso. Conhecem-se os propósitos divinos por uma ressonância interna da verdade no Ser encarnado, fato este que o capacitará para reconhecer-se como Espírito Imortal e como entidade que encarna e desencarna. Deus é uma realidade para o Ser espiritualizado pelas luzes das revelações mediúnicas. Sua existência se torna assim uma “realidade de amor” que trata de relacionar-se com o Espírito encarnado para beneficiá-lo com sua divina presença. E é assim que o Crer e a Fé não são dogmas ou pressuposições teológicas, mas se manifestam no Ser como realidades que dão significação à vida existencial e encarnada do indivíduo.


3. SOBRE O “AMAR OU NÃO AMAR”

No estado de fé o Ser penetra na verdade e passa através do ato existencial do crer, compreendendo que existimos para viver e para amar. Quando a fé e o crer se unem pelo sentido de Espírito imortal, o Ser chega ao ato de amar sem nenhum esforço. Então, nele se reúnem o Ser, o Crer e o Amar em uma única substância e o homem encarnado descobre que leva em si “graus de Cristo”, isto é, níveis de amor alcançados por seu próprio progresso espiritual. A noção do mundo invisível como uma presença espiritual se instala em sua consciência e o Ser alcança saber que todo existir como Espírito coadjuva sua própria existência, isto é, sua correspondente reencarnação. Mas, o que dá maior esplendor e objetividade a esta noção do mundo invisível é a comunicação que ele pode estabelecer com o visível. Esta realidade leva o Espírito encarnado a compreender que o imortal é eterno, como destino de todo ser existente, é propriedade da vida como fenômeno divino que é. O mundo invisível é a zona dos espíritos desencarnados que esperam corporizar-se no invisível por meio da reencarnação. Disso resulta que a existência é causa da preexistência e as contingências existenciais são situações palingenésicas determinadas pela própria evolução do Ser.


O existencial tem sua causa no essencial, razão pela qual pode-se afirmar, à luz da filosofia espírita, a primazia da Essência sobre a Existência e não o contrário, como sustenta o existencialismo de Sartre. O Ser, ao compreender que existe para a vida e que a morte e o nada não fracionara mortalmente sua realidade existencial, é capaz de amar. Chega a sentir em sua essência a fé e o Crer como base de seu existir e, por conseguinte, vive o ato de amar entre entregando-se ao mundo invisível superior com alegria e regozijo espiritual. O ato de amar se converte em vivência permanente de seu ato de ser e, em tal situação de iluminação, aumenta sua capacidade de crer. Deste modo o Espirito existe para Ser, para Crer e para Amar, o que constitui a mais bela síntese da existência encarnada. O Espiritismo, por ser ciência do Espírito, é o mais potente e real existencialismo do Ser e de Deus. Não há nele lugar para “uma existência que morre”; no Espiritismo só há Existência “que vive no divino e no eterno”. A raiz da existencialidade que nos revela é de vida imortal; por isso o Espiritismo é um existencialismo para vivos e não um existencialismo para mortos.


No Espiritismo não cabem nem a Morte nem o Nada; por conseguinte, é o verdadeiro Existencialismo, cuja base se acha no reexistencialismo, isto é, nas existências sucessivas que o ser atravessa para preencher os campos intelectuais e espirituais de sua consciência.


Todo saber existencial, que resulte impotente ante a morte, anula o ato de amar. Só se ama quando se sabe positiva e mediunicamente que o Ser é imortal e que no invisível se encontra a raiz que sustenta e dá forma ao visível. O amor é a consequência de um saber verdadeiro sobre o Espírito, pois que todo amor ferido pela morte se transforma em dor e desesperação. Para que o amor se manifeste no Ser plenamente, é necessário saber que a morte não é uma realidade e que o Ser vive no divino repetidas representações existenciais (reencarnações) que o aproximam continuamente da Verdade, da Beleza e do Amor.


Os filósofos modernos que buscam sobrepor-se à ideia da morte e do nada deverão recorrer ao Espiritismo, pois só nele está a ciência filosófica e religiosa que supera a morte. Pois quando a cultura dos povos modernos se basear sobre a realidade existencial do Espiritismo, já não haverá senão Espíritos avançados conscientemente para Deus, sabendo que se morre para viver e que todo existir verdadeiro conflui em um ato de amor.


4. SOBRE A FÉ ESPÍRITA

Se a fé é ver com os olhos do Espírito as coisas invisíveis, somente a fé espírita é a verdadeira, pois que é um saber de clarividência. A fé é um plano do ser que lhe permite penetrar na verdade pela sabedoria que nos dão os espíritos desencarnados. Isto porque toda fé sem conexão com a realidade do mundo invisível não é fé viva e criadora, mas sim, uma fé estática e sem vida espiritual.


A fé espírita é feita de ciência e filosofia, isto é, brota na alma pela experiência e a reflexão. Não é um postulado de ciências que responde às necessidades de um dogma. A fé espírita brota da própria alma do homem, pois que é a consequência das relações que mantém com o mundo dos espíritos. Quando a fé não é verdadeira, declina e muda com o correr do tempo; chega o momento em que se esgota totalmente no espírito por motivo de sua própria irrealidade. Daí a decadência espiritual das culturas, das nações e a aparição do ateísmo e do cepticismo.


A crise dos tempos modernos deve-se à falta de fé, apesar do que digam contra os partidários do racionalismo. A razão é a faculdade para medir e julgar as dimensões do mundo visível, mas a realidade não é puramente objetiva se necessita da fé que desenvolve a intuição convertendo-se assim em um instrumento que nos permite penetrar no mundo invisível.


A fé e a razão constituem o homem encarnado. Aí, fé é a essência desenvolvida que o Ser traz de suas vidas anteriores, enquanto que a razão é formada pela experiência sensorial que o Espírito realiza em seu estado de encarnação. Vale dizer que a fé é essência que pertence ao Espírito, e a razão o que se desenvolve com a inteligência, como saber experimental adquirido através do processo palingenésico.


A fé espírita é o extrato essencial deixado pela evolução do espírito. O mais alto do saber é a fé, cujo instrumento, na vida encarnada do Ser é a intuição, que é limitada ou extensa conforme for a acumulação da fé efetuada pelo Espírito.


A filosofia espírita, que reconhece o Ser como uma entidade que encarna e desencarna sem solução de continuidade, mantém que a inteligência sem a fé resulta limitada pela estreiteza sensorial em que se encontra o Ser que, como se sabe, é apenas um modo de apreender o conhecimento. A fé adquirida por uma expansão palingenésica da consciência, em contraposição, resulta para nós em um saber adquirido pela iluminação espiritual do objeto conhecido. A fé é capaz de ultrapassar o universo da forma, enquanto que a inteligência permanece aderida ao puramente formal. A fé é também inteligência, mas é um saber baseado na essência das coisas; poderíamos dizer que a fé é um saber inspirado que se faz magnifico em um saber mediúnico, o qual transfigura-o, fazendo-nos ver que todo conhecimento autêntico provêm do mundo dos espíritos.


A fé espírita é um saber do mundo espiritual; sua essência está formada por uma evolução da consciência e por uma constante comunicação da alma com o invisível. Dai resulta que todo o verdadeiro saber necessita crer em Deus e na verdade do Ser como espírito encarnado. Só assim se completará esse tipo de homem, capaz de sobrepor-se à morte e ao nada. Deste modo é que se reconhecerá que toda existência tem sucessivas e múltiplas existências, pelas quais o Ser se desenvolve amplamente até ressoar com a realidade invisível do Universo.


Um saber sem fé não completará nunca o Ser do homem encarnado, pois que, enquanto a fé não ponha em movimento a intuição, o homem permanecerá na epiderme do conhecimento e não se reconhecerá a si mesmo como uma entidade espiritual permanente e imortal. O pensamento à luz do Espiritismo é um fenômeno intelectual que se conquista pelo ato da encarnação vivido pelo Ser. Mas o pensamento logo se elabora, intimamente, até alcançar um refinamento tal que se transforma em essência do Ser e do Saber. Não esqueçamos de que o Ser é uma manifestação do Espírito sobre a base de seu processo palingenésico que o transfigura cada vez mais, até elevá-lo ao plano dos Espíritos puros.


As verdadeiras faculdades mediúnicas (repare-se que são faculdades) são o resultado de uma grande acumulação no ser de fé e de saber que permitem ao espírito encarnado comunicar-se com o mundo invisível. A isto Kardec chama mediunidade facultada, pois que está unida à evolução do Ser e é uma consequência dessa mesma evolução. De modo que a fé espírita é um estado superior de evolução que, à luz do Espiritismo, se pode anunciar como uma realidade.


Antes do advento da filosofia espírita a fé era uma coisa imposta ou sugerida à força de dogmas e crenças e se desmoronava ante a análise da razão. Por sua vez, a fé espírita quer dizer a iluminação da alma por diversas vivências espirituais do Ser e surge como uma consequência de profundas convicções acerca da existência do Ser e do mundo dos Espíritos. Este fato fez Kardec dizer que “a fé inabalável é aquela que pode olhar a razão em todas as idades da humanidade”.


Com este pensamento, o mestre espírita quis expressar que a cultura viverá diversas idades resumidas na científica, na filosófica e na religiosa; a fé espirita não será confundida porque o saber espiritual se converterá em sabedoria divina, para conhecer cada vez mais e melhor o Espírito e o Universo.



Fonte: RIE - Revista Internacional de Espiritismo, Matão-SP.


Humberto Mariotti (1905-1982), poeta, escritor, jornalista, conferencista e intelectual espírita argentino. Presidiu a Confederação Espírita Argentina em 1935/1937 e 1963/1967. Esteve, junto com Manuel S. Porteiro, no Congresso Espírita Internacional de Barcelona (1934). Foi também vice-presidente da Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA) em duas gestões. Escreveu, dentre outras obras: Dialéctica y Metapsíquica; Parapsicologia y Materialismo Histórico; El Alma de los Animales a Luz de la Filosofia Espírita; En Torno al Pensamiento Filosofico de J. Herculano Pires; Victor Hugo, el Poeta del Más Allá.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Você se considera Espírita? Por quê?


Por Maria das Graças Cabral

 

Diante de tantos conflitos de entendimento que permeiam o Espiritismo, lancei o seguinte questionamento aos companheiros que frequentam um Grupo que criei numa rede social: - Você se considera Espírita? Por quê?

O grupo é intitulado “Doutrina Espírita – Allan Kardec”, e quando o criei meu objetivo era abrir espaço para a divulgação e o estudo da Doutrina Espírita nas bases kardecianas. Só que ele foi caminhando como tudo na vida, escolhendo seus próprios caminhos e agregando pessoas. E foi através desses caminhos e das pessoas que vieram se “achegando” que tive e tenho o prazer de conhecer “virtualmente” muitos companheiros (as) de jornada, (alguns mesmo sem conhecê-los pessoalmente, já nutro um sentimento de afeição e admiração próprio dos amigos) e com eles, passei a constatar as mais acerbas divergências em relação à Doutrina dos Espíritos.

Leio seus comentários, me encanto com TODOS os posicionamentos, pois vejo a inteligência, os sentimentos e as percepções próprias da individualidade humana. Discordo radicalmente de alguns, concordo em parte com outros, e por incrível que pareça não concordo plenamente com ninguém. Por conseguinte constatei que a complexidade e o desencontro envolvendo a Doutrina dos Espíritos é muito maior do que a minha “santa” ignorância imaginava.

Daí, hoje, dia 18 de outubro de 2.012, às vésperas de completar 60 anos de idade, acordei me perguntado: Você se considera Espírita? Por quê? E minha resposta veio pronta, sem titubear. Sim, sou Espírita. Sinto-me Espírita.

Por quê? Bem, para responder por que, fui um pouco na busca da minha história, pois tem tudo a ver. Primeiramente, minha mãe era filha de pais espíritas, mas ela não era espírita. Hoje entendo que ela era uma devota de São Jorge. Lembro-me que sempre tinha diante da imagem daquele guerreiro sobre um cavalo, matando um dragão com sua enorme lança, uma vela acesa. Era a devoção de minha mãe.

Meu pai vinha de uma família profundamente católica. Não obstante, sempre foi categórico em afirmar que não tinha religião. Acreditava em Deus e procurava viver de forma harmoniosa com sua família, e respeitando as pessoas. Portanto, meus pais sempre me deixaram à vontade desde menina para escolher meu caminho de fé. E eu escolhi ser católica. Vale ressaltar que à época que escolhi ser católica (10 anos) não tinha nenhum contato com a família paterna, pois morávamos em outro estado, e eu mal os conhecia. Portanto, minhas escolhas não tiveram a interferência familiar.

Até que já no adiantado da vida, diante de muitos conflitos e atritos com os padres das paróquias que eu frequentava, ganhei de presente O Livro dos Espíritos. E aí eu me encantei! Encontrei as respostas que já trazia dentro de mim. Compreendi certos fenômenos espíritas que vivenciei. Pude acompanhar de forma criteriosa a mediunidade de grande potencialidade de meu filho. Aliás, ele sempre afirma que se não fosse filho de uma mãe espírita, talvez o considerassem louco...

Mas até aí, eu vivenciava o Espiritismo dentro de uma Casa Espírita, sendo conduzida e me deixando conduzir por todo esse misticismo que se conecta com a bagagem trazida pelo catolicismo. E na Casa Espírita me tornei monitora de ESDE, doutrinadora nas reuniões mediúnicas de desobsessão, palestrante, ajudei a criar uma ONG, e até aí eu achava que tudo estava perfeito!

Entretanto, quanto mais eu estudava as Obras Fundamentais espíritas mais eu identificava as incongruências doutrinárias que eram repassadas na Casa Espírita por monitores, dirigentes, palestrantes. E como não gosto de me omitir, passei a incomodar, a me sentir incomodada, e resolvi ser espírita fora do Centro Espírita.

E aí fui buscar aplicar o Espiritismo na vida. Como professora, com meus alunos e alunas, com meus colegas de profissão, com amigos, filhos, e com aquele “pessoal” que como dizem os mais jovens “eu não curto muito”. Foi só então que a minha “ficha caiu”, e passei a entender porque Kardec dizia que o Espiritismo não era religião. Sim, não é mesmo!

A Doutrina Espírita ao contrário de tudo o que até hoje nos foi apresentado, é libertadora, porque educa! Ela nos consola e fortalece para as batalhas da vida, sem precisarmos virar “santinhos” de um momento para outro. Dizem-nos os Mestres Espirituais que “a virtude não consiste numa aparência severa e lúgubre, ou em repelir os prazeres que a condição humana permite”, mas que busquemos em todos os nossos atos elevar o pensamento ao Criador. (O Homem no Mundo – ESE, cap. XVII, 10) Ou seja, a DE nos emancipa, nos liberta das “muletas” onde nos escorávamos através das religiões, dos líderes religiosos, dos gurus, etc. Somos os autores do nosso destino, mas não estamos no desamparo, pois ela nos fala dos nossos anjos guardiões e amigos espirituais.

E por que me considero atualmente mais Espírita do que nunca? Porque acredito na seriedade e competência de Allan Kardec e no seu trabalho como Codificador da Doutrina dos Espíritos. Porque entendo e aceito plenamente os princípios doutrinários espíritas. Porque busco aplicar os ensinamentos dos Espíritos na minha vida, e isso me faz desenvolver uma maior responsabilidade comigo mesma, pois não posso atribuir a ninguém esse legado.

Para finalizar, me aproprio de um trecho de O Evangelho Segundo o Espiritismo, intitulado “Os Bons Espíritas”, quando nos é dito que: - “Reconhece-se o verdadeiro espírita pela transformação moral, e pelos esforços que faz para dominar suas más inclinações. Enquanto um se compraz no seu horizonte limitado, o outro, que compreende a existência de alguma coisa melhor, esforça-se para se libertar, e sempre o consegue, quando dispõe de uma vontade firme”. Portanto, me considero Espírita numa condição de espírito imperfeito, que está na luta, de uma forma consciente, na busca de equilíbrio e paz.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Kardec Foi um Filósofo?

Por Jaci Regis

Três questões serão debatidas neste trabalho:
1.    Como conciliar o fato de o Espiritismo se declarar, simultaneamente, uma revelação e uma filosofia;
2.    É possível caracterizar a obra de Kardec como uma obra filosófica?
3.    Como resolver o paradoxo da fé raciocinada?
O objetivo final é provar que o Espiritismo é uma filosofia.
No livro “A Gênese”, Allan Kardec afirma que o Espiritismo é uma revelação e procura mostrar o seu caráter. Mas, também, ao longo de sua obra e de forma taxativa, caracteriza-o como uma filosofia.
Devemos, pois, em primeiro lugar, tentar compreender o que sejam filosofia e revelação. Comecemos por filosofia.
Não tem sido fácil definir o que seja filosofia. Entretanto, existe um conceito espontâneo de que a filosofia é uma parte essencial da atividade do homem. Ligada à sabedoria, ao exame e à discussão exaustiva, embora não conclusiva, das causas e dos seres, a filosofia tem sido caracterizada como uma atividade superior do homem, um exercício indispensável ao saber e à certeza.
Historicamente, distinguem-se duas formas de exercício da filosofia: de um lado a socrático-platônica, que exprime uma concepção do eu, isto é, uma autorreflexão do espírito sobre os seus supremos valores teóricos e práticos, sobre os valores do verdadeiro, o bom e o belo. De outro, a aristotélica, que apresenta, antes de tudo, uma concepção do universo. Embora tenha havido uma regularidade pendular entre essas duas concepções, tende-se a uma acumulação, a uma conjugação desses pontos, pois a filosofia é simultaneamente as duas coisas: uma concepção do eu e uma concepção do universo.
Em síntese, pode-se compreender que a filosofia é uma autorreflexão do espírito sobre seu comportamento e, ao mesmo tempo, uma aspiração ao conhecimento das últimas ligações entre as coisas.
Quanto à revelação, analisaremos, ainda que rapidamente, as colocações feitas por Allan Kardec no capítulo I de “A Gênese”, servindo-nos da tradução de Guillon Ribeiro (edição da FEB). Nele, o autor define revelação como “dar a conhecer uma coisa secreta ou desconhecida”. Logo, “deste ponto de vista, todas as ciências que nos fazem conhecer os mistérios da Natureza são revelações e pode dizer-se que há para a Humanidade uma revelação incessante” (item 2). E adiante: “O que de novo ensinam aos homens (os grandes gênios, messias, missionários) quer na ordem física, quer na ordem filosófica, são revelações (grifo de Kardec). “Se Deus suscita reveladores para as verdades científicas, pode, com mais forte razão, suscitá-las para as verdades morais, que constituem elementos essenciais do progresso. Tais são os filósofos, cujas ideias atravessam os séculos” (item 6). No tocante à revelação religiosa, diz Kardec: “implica a passividade absoluta e é aceita sem verificação, sem exame e discussão” (item 7).
Finalmente, quanto ao Espiritismo, afirma Kardec: “é uma verdadeira revelação, na acepção científica da palavra”, isto é, dá “a conhecer o mundo invisível que nos cerca e no meio do qual vivemos sem o suspeitarmos, assim como as leis que o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam e, por conseguinte, o destino do homem depois da morte” (item 12).
Kardec coloca o Espiritismo como uma “revelação científica” que é caracterizada por ser “divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem”. É uma revelação científica, enfatiza: “por não ser ensino (dos Espíritos) privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida pelo trabalho do homem, da observação aos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações” (item 13 - grifos de Kardec).
Isso fica mais claro ainda quando ele analisa a questão: “qual a autoridade da revelação espírita, uma vez que emana de seres de limitadas luzes e não infalíveis?” Nessa aparente fragilidade, o Codificador aponta sua característica básica, ao afirmar que o Espiritismo é fruto da elaboração entre pessoas de dois planos de vida. Os Espíritos propõem, mas os homens concorrem com o seu raciocínio e seu critério, tudo submetem ao cadinho da lógica e do bom senso. Isto é, o homem se beneficia dos conhecimentos especiais que os Espíritos dispõem pela posição em que se acham, sem abdicar do uso da própria razão (item 57).
Esse caráter específico da revelação espírita é, também, uma inovação no campo filosófico, antes dominado apenas pela cogitação a partir de um ponto de observação unilateral, isto é, da busca e da inquietação do homem perante o mistério e as contradições do ser, diante de si mesmo, da existência e do universo. Agora, esse mesmo cogitar é enriquecido pela contribuição de homens que passaram a existir numa dimensão diferente, — os Espíritos — mas dentro da humanidade.
Sendo, em lato senso, urna elaboração da razão humana — encarnada e desencarnada — o Espiritismo é uma reflexão sobre o ser e o universo, abrangendo a totalidade e não se detendo no particular. A palavra “revelação” é, num primeiro sentido, uma contradição nesse quadro e só é aceita por Kardec a partir de uma visão didática, para que a intervenção das inteligências desencarnadas seja compreendida no processo.
Poderá a obra de Allan Kardec ser categorizada como filosófica? Ou melhor seria considerá-la uma obra didática? Encontramos no seu transcorrer uma reflexão sobre o ser, o belo, o bom? Há, em seu bojo, cogitações sobre a natureza essencial das coisas, uma visão do universo e das relações últimas entre os objetos? Sim, a resposta é afirmativa.
Entretanto, o fato desses temas serem abordados não significa, necessariamente, que a obra seja filosófica. O que caracteriza esse aspecto é o fato de apresentar uma reflexão, propor soluções e inovar na abordagem de temas que, sendo universais e se constituírem razão da cogitação da inteligência, se enquadrem num quadro amplo da inquietação do homem.
Analisada sob esse ângulo, a obra de Kardec é, em seu conjunto, uma reflexão filosófica. O próprio “O Livro dos Espíritos” é um filosofar dialético entre duas inteligências humanas, reunidas no ato de refletir sobre os fundamentos do ser, do destino e de Deus. Semelhante ao diálogo do Banquete, de Platão, Kardec e o Espírito da Verdade, maieuticamente confabulam num mesmo nível de inquietude. Esse debate dialético não espelha um superior ministrando lições a um inferior. Mas, duas potências do saber dialogam, exprimindo visões específicas que resultam na síntese doutrinária do Espiritismo. A partir desse diálogo, Kardec, seja nos comentários que aduz às questões ou em capítulos inteiros de “O Livro dos Espíritos”, evidencia o tratamento filosófico das ideias.
O que caracteriza, por outro lado, a filosofia kardecista, se assim podemos falar, é a sua praticidade. Marx afirmou que “os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diferentes maneiras; trata-se é de transformá-lo”, exigindo a crítica radical, que vai às raízes e à práxis, isto é, à ação revolucionária. Essa tese foi lançada por Marx por volta de 1845, doze anos antes de “O Livro dos Espíritos”. Pode-se dizer que Kardec também realizou, a seu modo, uma filosofia de ação, de pratos, transformadora e revolucionária, ao propor uma nova reflexão sobre os fundamentos da vida, do ser e do mundo, inaugurando a visão espírita. E, também, promoveu a elevação dos Espíritos à categoria de seres existentes e não potenciais, ao abrir, por assim dizer, a cortina que separava o homem vivente no plano corpóreo ao homem vivente no plano extra físico.
A filosofia que Kardec desenvolveu foi discursiva-racional, não considerando a intuição como uma fonte autônoma de conhecimento. Embora reconhecendo a totalidade emocional, volitiva e cognitiva do Espírito, não poderia deixar de cingir-se à razão como juíza do saber. Não nega a intuição como uma das formas de apreensão da realidade. Todavia, “toda intuição tem que legitimar-se perante o tribunal da razão”.
Embora seguindo, sob certos aspectos, um esquema muito ligado às preocupações teológicas, Kardec manteve-se numa linha de equilíbrio racional, definindo, por fim, o Espiritismo como filosofia moral, com o que se libertou das amarras de uma teologia. A reflexão sobre a reencarnação, como instrumento de desenvolvimento das potências do Espírito, define a filosofia espírita, em oposição à teologia.
Na verdade, o esquema kardecista seguiu, em linhas gerais, a própria estrutura do pensamento filosófico da época. Foi a partir do século 19 que as ciências se libertaram definitivamente da filosofia, mudando esta seu campo de atividade e atuação formal.
O didatismo de Kardec não prejudica a sua obra, nem lhe descaracteriza a fundamentação filosófica. Exprime, apenas, uma face da capacidade de comunicação própria do autor, cujo estilo sem adjetivação excessiva, o torna objetivo, desprendido de palavras e formulações tortuosas. Deve-se ter em mente que o professor Rivail mostrou em sua obra — cerca de 21 volumes — um poder de objetividade, de concisão ainda não suficientemente estudado, antecipando-se aos progressos da linguagem atuais tanto da informática, quanto da linguística. O fato de escrever numa linguagem direta, limpa, inova mais uma vez, enriquecendo o conteúdo filosófico.
Se acompanharmos o pensamento kardecista, não apenas nos livros fundamentais, mas ao longo das edições da “Revista Espírita”, haveremos de reconhecer a posição de Kardec como homem prático, jornalista, administrador, pesquisador, orador, líder, polemista, escritor, o que naturalmente não lhe poupava tempo para elucubrações excessivamente teóricas. No espaço de apenas 14 anos escreveu mais de 20 livros, incluindo as edições da “Revista Espírita”, que redigiu sozinho e desenvolveu uma atividade realmente exaustiva. Realizou, todavia, uma teorização sobre os fatos, de modo que não se perdessem os resultados das pesquisas e das observações.
Flammarion chamou-lhe de “Bom Senso Encarnado”, mas negou-lhe o caráter de cientista. Todavia, com o desenvolvimento das ciências humanas, já não se pode negar a Kardec, também, esse título porque realizou, como Bozzano, embora em menor escala, é verdade, um árduo trabalho de pesquisa, observações pessoais e coleta de dados. Com todo esse material, deduziu um conjunto de ideias e fundamentos. Foi filósofo do real, da ação, da prática, apoiando-se em dados experimentais. Deduziu sobre os fundamentos morais do universo — refletindo sobre a natureza do homem, suas dimensões físico-espirituais, o processo evolutivo a que está submetido, sua imortalidade e seu destino. Especulou sobre o absoluto, Deus, como centro de interesse e equilíbrio do Universo.
Mesmo nos livros que numa falsa visão cultural são chamados de “religiosos”, manteve essa postura filosófica. Tanto no “Evangelho Segundo o Espiritismo”, como no “O Céu e o Inferno”, que abordam temas da teologia, comportou-se de maneira coerente com sua visão filosófica e é sob este ângulo que examina, tanto a contribuição de Jesus de Nazaré, que libera dos aspectos místicos, para concentrar-se no conteúdo moral de seu ensino, quanto os aspectos da Justiça Divina, em “O Céu e o Inferno”.
Se Allan Kardec estruturou a Doutrina Espírita como uma filosofia moral, porque, contraditoriamente, adotou o tema “Fé raciocinada”? Se, como ele repetidas vezes afirmou, o Espiritismo é uma doutrina positiva, repudiando todo o misticismo, qual o motivo que o teria levado a mencionar a fé como uma condição importante para o homem?
Mostramos que a estrutura filosófica do Espiritismo é discursiva-racional e que abrange tanto uma concepção do ser, como uma concepção do universo e, mais ainda, projeta-se como uma práxis, atuando no mundo para modificá-lo. Trata-se como se vê, de tentativa para sintetizar a angústia humana, convergindo, inevitavelmente, para o campo moral. Ora, as religiões sempre se colocaram como guardiãs da moralidade, embora, quase sempre, decaindo para um moralismo. Kardec não podia negligenciar o fato de que a moralidade é a meta principal do Espiritismo — embora enfocada sob uma visão libertadora. Daí o ter afirmado que o Espiritismo é forte por tocar os pontos principais das religiões: Deus, o espírito e as penas futuras. Chegou mesmo a tentar colocar o Espiritismo como o elo, a aliança entre a ciência e a religião.

E aí se situa a sabedoria da proposta espírita. Não é uma postura inflexível porque é progressiva e isso lhe garante a mobilidade, abrindo-se para compreender as múltiplas formas de expressão do Espírito em sua caminhada evolutiva. E, nessa caminhada, a religião tem sido um fator marcante, embora nem sempre positivo, ao contrário, o que levou Kardec a lamentar que “infelizmente as religiões hão sido sempre instrumentos de dominação” (“A Gênese”, cap. I, item 8).
No domínio da fé, temos uma atitude específica do Espírito. Ela é intuitiva, é a apreensão da totalidade, a germinação da certeza interna, surgida da vivência, dos valores. David Hume, filósofo inglês, definiu-a dessa forma: “a fé é muito mais um ato da parte afetiva de nossa natureza do que de sua parte pensante”.
Ao postular a “fé raciocinada”, Kardec  inseria um paradoxo, considerando as bases da filosofia espírita, chamando-nos à reflexão. Definindo essa contradição, Kardec afirma: “fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da humanidade” (“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, tradução de Guillon Ribeiro - FEB). Quer dizer, ele afirma que a inabalavidade da fé depende da razão, ou seja, que a apreensão intuitiva da totalidade, como uma certeza interna, pode ser falsa, incorrer em erro de interpretação, se não passar pelo crivo da razão. Dessa atitude surge uma nova fé que seria motivadora, totalizadora, porque submetida ao juízo racional.

Dentro dessa perspectiva, o Espiritismo se propõe a aliar a ciência e a religião, mas, todavia, não se reduz nem a uma nem a outra, mas transcende-as. Dialeticamente, aceitando a ciência e a religião como posições reais no conhecimento e vivência humanas, o Espiritismo procura transformá-las. De um lado, sendo ciência do Espírito, completa a ciência convencional cujo objeto é o conhecimento do meio físico como o único concreto e possível. De outro, destruindo o sobrenatural em que a religião se assenta, liberta o homem de um conceito estreito e falacioso da vida, propondo-se como filosofia moral, onde os conceitos morais coexistem com a racionalidade e desataviados dos prejuízos do culto.
Kardec rejeitou o fato de que o homem crer em Deus e orar se caracterizasse como um ato místico. Ao contrário, afirmou ser uma atitude positiva, decorrente da abertura que o Espiritismo, filosoficamente, promove. Logo, a fé que Kardec aborda é, sobretudo, saber, crença baseada na razão. E se estrutura como uma nova postura do homem perante a vida, pois que não nega o impulso da experiência interna na apreensão da totalidade, mas indica o caminho da crítica e da atividade construtiva, para que a fé não continue sendo contemplação e alienação místicas.
Sendo o Espiritismo uma nova visão do homem e do mundo, caracteriza-se como um pensar filosófico, como uma filosofia estruturada na pesquisa do conhecimento, do ser e do universo. Tendo base experimental, seu filosofar é existencial, atua no mundo para modificá-lo. O pensamento kardecista — isto é, espírita — apresenta-se como um sistema de ideias claramente definido e eficientemente deduzido. Essa afirmativa nos leva à conclusão de que o professor Hipollyte Léon Denizard Rivail — Allan Kardec — pode ser conceituado como um autêntico filósofo, na lídima acepção do termo.
 
 

Observação: No tocante às definições de filosofia, usamos expressões do livro “Teoria do Conhecimento”, do professor Johannes Hessen, 3a edição - Armênio Amado Editor, Coimbra - Portugal.

Fonte: revista “A Reencarnação”, n º 401 - Ano L - outubro de 1984, órgão de divulgação da Federação Espírita do Rio Grande do Sul.

Jaci Regis (1932-2010), psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi o fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”, “Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.


sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Os Espíritas: Místicos, Ortodoxos e Agnósticos em face da Doutrina Espírita.


Por Maria das Graças Cabral

 

Vivenciamos na primeira década do século XXI sérias dissenções entre os Espíritas, as quais se arrastam desde o desencarne de Allan Kardec, passando por uma série de fatores que levaram hodiernamente o Espiritismo a vários segmentos.

As discussões se arrastam... De um lado identificam-se os denominados “espíritas místicos”. Estes tornaram o espiritismo uma religião dogmática, ritualística, com líderes religiosos e santos. Seus centros espíritas funcionam no formato de igrejas. Defendem ferrenhamente seus ícones religiosos, e são encontrados em sua grande maioria no Brasil.

Ao centro estão os denominados “espíritas ortodoxos”, que são aqueles que buscam estudar e vivenciar os preceitos Espíritas estabelecidos nas Obras Fundamentais sistematizadas por Kardec.  

Entretanto, dentre estes surgem divergências de cunho interpretativo doutrinário, formando subgrupos. De um lado os “ortodoxos religiosos”, que embora tenham suas bases doutrinárias kardecianas, “entendem o espiritismo como uma religião em seu caráter filosófico, tendo esse, segundo seu entendimento, até mesmo um credo próprio”. Também de certa forma, se assemelham aos místicos quando elegem certos líderes encarnados e/ou desencarnados como seus paradigmas, seu “norte”.

Do outro lado estão os “ortodoxos não religiosos”, que rechaçam o Espiritismo como Religião, pois o entendem como uma doutrina sistematizada que se prende a “todos os ramos da filosofia, da metafísica, da psicologia e da moral”, sem o caráter religioso. Estes se pautam especificamente no estudo das obras fundamentais.

Não obstante, não bastando essas “tribos”, encontram-se no extremo oposto, os “espíritas agnósticos”, posto que, “o agnosticismo pode ser definido de várias maneiras, e às vezes é usado para indicar dúvida ou uma abordagem cética a perguntas. Em alguns sentidos, o agnosticismo é uma posição sobre a diferença entre crença e conhecimento, ao invés de sobre qualquer alegação específica ou crença” - que é o caso dos referidos espiritistas. (In: http://www.dicionarioinformal.com.br. Acesso em 05/10/2012)

Fazendo-se uma análise dos extremos, podemos constatar que os “místicos espíritas”, da mesma forma que os “agnósticos espíritas”, perderam totalmente o referencial kardeciano.

É fato que, enquanto os “místicos” adotaram Chico Xavier como o paradigma do Espiritismo, e suas psicografias como livros doutrinários espíritas - os “agnósticos” questionam a autoridade de Allan Kardec, seu método e os próprios princípios Doutrinários.

Enquanto os “místicos espíritas” idolatram médiuns e espíritos, como os porta-vozes das “novidades espirituais” diante das já “ultrapassadas” e “desnecessárias” “Obras Básicas” - os “agnósticos espíritas” questionam o método kardeciano, a validade do que foi posto pelos Mestres Espirituais, e também já consideram ultrapassadas as Obras Fundamentais.

Portanto, dentre as mais variadas vertentes Espíritas, percebe-se que Allan Kardec e os Princípios Doutrinários se perderam no meio desse turbilhão de pensamentos, convicções, entendimentos e interesses equivocados.

Diante de tal realidade, e sabendo da dificuldade que nós humanos enfrentamos para vencer os grandes vícios que se incrustam em nossa alma por inúmeras encarnações, me aproprio das palavras de Kardec, quando desenvolvia um fantástico diálogo com o Cético na obra O QUE É O ESPIRITISMO, e assim se expressava:

“O mundo corporal e o mundo espiritual alternam-se incessantemente. Pela morte do corpo o mundo corporal oferece seu contingente ao mundo espiritual. Pelo nascimento, o mundo espiritual alimenta a humanidade”. (...)

“Os Espíritos que formam a população invisível da Terra são, de certa maneira, o reflexo do mundo corporal. Encontram-se neles os mesmos vícios e as mesmas virtudes aqui observadas. Existem sábios e ignorantes, pseudosábios, prudentes e levianos, filósofos, calculistas e sistemáticos. Uma vez que não se libertam de suas preocupações, entre eles todas as opiniões políticas e religiosas têm os seus representantes”. (2001: p. 58) (grifo nosso)

Portanto, pode-se vislumbrar o intercâmbio que se faz entre os dois planos da vida no que concerne à Doutrina Espírita, posto que, ela continua incomodando profundamente espíritos encarnados e desencarnados, ainda arraigados a determinadas convicções, gerando dissenção e discórdia entre todos que se consideram de uma forma ou de outra, espíritas.  

Impressiona quão poucos se apercebem que foi o “outro olhar” de Kardec sobre os fenômenos espíritas, saindo do campo das frivolidades para a observação séria através do método experimental, que conduziu às grandes revelações da realidade espiritual, e que estamos longe, muito longe de dominar tal verdade.

Impressiona quão poucos se apercebem que através da dialética, Kardec encontrou respostas dadas pelos grandes Mestres da Espiritualidade, para questionamentos universais, que perseguem o homem desde que tomou consciência de si mesmo. Quem sou eu, de onde vim e para onde vou?

Na realidade, Allan Kardec desenvolveu uma obra monumental, utilizando-se do método experimental para os fenômenos mediúnicos e utilizando-se da racionalidade, do bom senso, da filosofia, e do seu intelecto para sistematizar todo o corpo doutrinário espírita.  

E aqui estamos em pleno século XXI, tendo espíritas temerosos com o “fim do mundo”, em razão das predições feitas por seus ícones religiosos. Outros, questionando o aspecto religioso da Doutrina.  Alguns, pondo em “xeque” a autoridade doutrinária de Kardec e dos princípios espíritas, na busca de outra vertente doutrinária mais avançada e condizente com os “avanços” do pensamento e da ciência. Não se podendo deixar de lado, os espíritas que também rechaçam Jesus como o paradigma da moralidade, que foi inserido no corpo doutrinário espírita por Allan Kardec sob a orientação dos Espíritos Superiores.

Ou seja, a população de espíritos que retornou ao orbe terrestre na condição de encarnados, ainda não se encontra preparada para assimilar a grandiosidade da Doutrina dos Espíritos! Estamos perdidos.

 Vale nesse contexto considerar, a população desencarnada arraigada a determinadas convicções, que interage através das afinidades fluídicas e de pensamento com seus afins do plano físico, fomentando mais e mais as dissensões.

Em face de tal realidade, faz-se por oportuno apresentar os fundamentos do Espiritismo estabelecidos por Kardec na Introdução de O Livro dos Espíritos. Entende-se por óbvio, que diante de tais princípios não caberiam controvérsias entre místicos, ortodoxos ou agnósticos, posto que, são fundamentos doutrinários presentes nas obras fundamentais sob a orientação e aval de O Espírito da Verdade.

Apresento de forma sucinta, quais sejam esses fundamentos elencados por Kardec: 1) a existência de Deus e sua condição de criador de todos os seres animados e inanimados; 2) a existência do mundo espírita como normal, primitivo, eterno, preexistente e sobrevivente a tudo; 3) a existência do mundo corporal e secundário, pois pode deixar de existir ou nunca ter existido sem alterar a essência do mundo espírita; 4) há no homem o corpo material semelhante ao dos animais e animado pelo princípio vital; a alma ou ser imaterial, espírito encarnado no corpo; e o liame que une a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito (períspirito); 5) os Espíritos pertencem a diferentes classes, não sendo iguais em poder nem inteligência, saber ou moralidade, e evoluem passando pela encarnação, que a uns é imposta como uma expiação e a outros como missão; 6) deixando o corpo, a alma volta ao mundo dos Espíritos, e permanecerá por um lapso de tempo mais ou menos longo durante o qual permanecerá no estado de Espírito errante; 7) a encarnação dos Espíritos ocorre sempre na espécie humana, e as diferentes existências corporais do Espírito são sempre progressivas e jamais retrógradas; 8) a alma tinha a sua individualidade antes da encarnação e a conserva após a separação do corpo; 9) os Espíritos encarnados habitam os diferentes globos do Universo; 10) os Espíritos não encarnados ou errantes não ocupam nenhuma região determinada ou circunscrita; estão por toda parte, no espaço e ao nosso lado, vendo-nos acotovelando-nos sem cessar - é toda uma população invisível que se agita em nosso redor; 11) os Espíritos exercem sobre o mundo moral e mesmo sobre o mundo físico uma ação incessante - agem sobre a matéria e sobre o pensamento e constituem uma das forças da Natureza; 12) as relações dos Espíritos com os homens são constantes, e as comunicações ocultas verificam-se pela influência boa ou má que eles exercem sobre nós sem o sabermos, cabendo ao nosso julgamento, discernir as más e boas inspirações; 13) os Espíritos são atraídos na razão de sua simpatia pela natureza moral do meio que os evoca; 14) a moral dos Espíritos superiores se resume, como a do Cristo, nessa máxima evangélica: “fazer aos outros o que desejamos que os outros nos façam”, dentre outras considerações. (Introdução de O Livro dos Espíritos, p. 32 a 35)

Entretanto, diante da grande complexidade que envolve toda a dissidência e divergência doutrinária, pode-se vislumbrar pelo “andar da carruagem” que ainda percorreremos alguns séculos em meio ao turbilhão de equívocos relacionados ao aprofundamento e/ou entendimento dos preceitos espíritas.

Não obstante, diante dos princípios acima propostos pela Doutrina dos Espíritos, o que nos conforta é saber que a “dimensão temporal” é relativa face à eternidade. Daí advém à certeza de que em “algum tempo”, todos nós avançaremos rumo ao saber e a moralidade. Em tal condição estaremos despidos dos farrapos do orgulho e da vaidade que são os trajes da ignorância, e vestidos com o manto da sabedoria que é a veste dos humildes, pacíficos e felizes. Afinal, conheceremos a verdade e ela nos libertará (palavras de Jesus).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Editora LAKE. São Paulo/SP. 62ª edição. 2001.

KARDEC, Allan. O Que é o Espiritismo. Editora LAKE. São Paulo/SP. 26ª edição. 2001.