sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O Existencialismo Hominal à Luz da Filosofia Espírita


Por Humberto Mariotti


1.     SOBRE O “SER E O NÃO SER”


“To be or not to be” é o dilema filosófico e religioso apresentado por Hamlet ao refletir contemplando uma caveira, pois nele se resume todo o drama existencial do homem. Se o individuo humano é um ser destinado a dissolver-se no nada, os valores morais e a significação dos processos espirituais e sociais não têm nenhuma razão lógica para serem considerados como fatores positivos da Humanidade, uma vez que unicamente o que se destacaria nele seria um existir transitório, colocado entre dois enigmas insolúveis: o berço e a sepultura.


Entretanto, o Ser está destinado a ter império sobre a existência; sua natureza de essência imaterial não está destinada a diluir-se na noite do nada já que possui uma transcendentalidade que o aproxima do imortal para fazê-lo penetrar definitivamente no eterno.


O Ser é porque não há um existir para o nada. Se o Ser é um ato espiritual, seu destino consiste em fazer-se consciente de sua invulnerabilidade frente à morte. Se o Ser nasce é porque já existia no seio da vida como uma essência condicionada pela existência espiritual. Não haveria Ser se seu existir estivesse destinado a ruir como um castelo de baralho na obscuridade do irracional e do nada. Mas o “ser ou não ser” de Hamlet, profunda problemática para a filosofia de todos os tempos, foi resolvido pelo gênio mediúnico da doutrina espírita. O Ser foi confirmado como Espírito imortal e, por conseguinte, como entidade que não foi superada pela morte, razão pela qual se revelou como entidade viva e comunicante.


Toda filosofia niilista para ser rebaixada no que respeita ao nada, sobre o qual se assenta, necessita de uma demonstração existencial mediúnica que lhe faça ver a vida vencendo a morte. Pois que o Ser é, existe e está destinado a vencer as limitações da morte para revelar-se ante a inteligência como uma Existência Viva, cuja característica moral e psicológica não se verá alterada no mínimo que seja pelo ato de morrer que o aguarda. Recordemos que ato de morrer se transforma com a filosofia espírita em ato de ser, o que quer dizer que esse ato resulta em uma transfiguração do homem até mostrar-nos a verdadeira imagem do indivíduo. A morte à luz do Espiritismo se transforma na desencarnação e o ato de nascer em encarnação e reencarnação.


O Ser, em sua realidade existencial encarna e desencarna, o que significa que o nascer e o morrer da antiga visão filosófica e religiosa é superada pela realidade do Ser imortal que, através da encarnação e desencarnação, passa através da história para dar cumprimento à noção espírita que nos diz: “Nascer, morrer e renascer, tai é a lei”. De maneira, pois, que o “ser e o não ser” de Hamlet, — se bem que, por certo, segue espicaçando um grande setor da antropologia moderna — foi amplamente elucidado, não apenas pela razão filosófica, mas também por “atos existenciais” que se revelam por intermédio do fenômeno mediúnico.


O dilema de “ser ou não ser” foi transfigurado por essa brecha aberta pelos espíritas, brecha que nos mostra a verdadeira natureza do Espírito e da Vida. A reflexão filosófica deverá penetrar nesses novos estágios do conhecimento e reconhecer que todo ato existencial e todo intento cultural de conhecer o homem e o mundo, só se tornará um fato quando se reconheça positivamente que o Ser é uma realidade existencial sem perigo de ser aniquilado, nem pela morte nem pelo nada eternos.


2. SOBRE O “CRER OU NÃO CRER”


Allan Kardec, no capítulo “O Futuro e o Nada” de seu livro “A Gênese”, revela-se-nos como Hamlet, um notável filósofo existencial quando diz: “Ser ou não ser: tal é a alternativa”, o que nos apresenta esta outra dramática interrogação: “crer ou não crer”? Com efeito, se o homem não crê em algo transcendental, não crerá tão pouco em seu próprio ser e existir, já que o Ser e Crer são dois fatos que se interpenetram reciprocamente.


Se o Ser não é uma realidade espiritual, o ato de crer resulta impossível, pois só poderá crer quem está seguro de seu Ser como entidade existencial imortal. Então, crê-se na própria existência e na existência dos outros. O Ser se reconhece como realidade espiritual e, não obstante as diversas finalidades de sua angústia, na finalidade de sua dor, transcende toda ideia da morte e do nada.


O Ser se afirma como entidade lógica ante as realidades contrárias porque se sente Vida e Ser, reconhece que seu drama existencial está ligado ao mistério do tempo, através do qual se desenrola sua essência, eterna e palingenésica. William James falou da “necessidade de crer”. Em realidade, o ato de crer é o que dá ao homem personalidade moral e fé no destino que lhe compete viver como Ser existencial.


Se o homem crê, estará a salvo do niilismo e de toda morte espiritual. Crer é, pois, possuir o dom da fé porque somente nessa condição se poderá olhar a existência como Ser e Transcender, e reconhecer-se-á que o Crer conflui no ser e existir eternos. Se a “fé verdadeira pode olhar a razão face a face em todas as idades da Humanidade”, essa fé é a que deverá se enraizar no Ser para sua “salvação” frente ao nada. E a fé aparece quando o Espírito se reconhece a si mesmo como uma realidade indestrutível, por cuja razão pode chegar a crer com toda intensidade na finalidade inteligente da Existência e do Universo.


Ser e Crer são duas realidades existenciais que a filosofia universitária não alcança confirmar firmemente sobre fatos experimentais. Apenas a filosofia espírita pode dar consistência real ao Ser e ao Crer, ao relacionar a inteligência encarnada com a desencarnada.


Crer na Vida, no Espírito e em Deus, através do saber espírita, é viver um crer comunicante com a verdade. Surge na alma do Homem uma fé inamovível, a qual dar-lhe-á serenidade e segurança, ao reconhecer-se como Ser inamovível, a qual lhe dará serenidade e segurança ao reconhecer-se como ser encarnado. O drama existencial será para ele como uma consequência da lei moral que determina sua condição palingenésica. Vem daí que o Crer se converterá em Fé e toda contradição existencial experimentada pelo Ser se converterá em vivência criadora.


A fé e o crer espíritas representam dois atos espirituais que colocam o Ser em planos mais sutis e reais para o entendimento filosófico e religioso. Conhecem-se os propósitos divinos por uma ressonância interna da verdade no Ser encarnado, fato este que o capacitará para reconhecer-se como Espírito Imortal e como entidade que encarna e desencarna. Deus é uma realidade para o Ser espiritualizado pelas luzes das revelações mediúnicas. Sua existência se torna assim uma “realidade de amor” que trata de relacionar-se com o Espírito encarnado para beneficiá-lo com sua divina presença. E é assim que o Crer e a Fé não são dogmas ou pressuposições teológicas, mas se manifestam no Ser como realidades que dão significação à vida existencial e encarnada do indivíduo.


3. SOBRE O “AMAR OU NÃO AMAR”

No estado de fé o Ser penetra na verdade e passa através do ato existencial do crer, compreendendo que existimos para viver e para amar. Quando a fé e o crer se unem pelo sentido de Espírito imortal, o Ser chega ao ato de amar sem nenhum esforço. Então, nele se reúnem o Ser, o Crer e o Amar em uma única substância e o homem encarnado descobre que leva em si “graus de Cristo”, isto é, níveis de amor alcançados por seu próprio progresso espiritual. A noção do mundo invisível como uma presença espiritual se instala em sua consciência e o Ser alcança saber que todo existir como Espírito coadjuva sua própria existência, isto é, sua correspondente reencarnação. Mas, o que dá maior esplendor e objetividade a esta noção do mundo invisível é a comunicação que ele pode estabelecer com o visível. Esta realidade leva o Espírito encarnado a compreender que o imortal é eterno, como destino de todo ser existente, é propriedade da vida como fenômeno divino que é. O mundo invisível é a zona dos espíritos desencarnados que esperam corporizar-se no invisível por meio da reencarnação. Disso resulta que a existência é causa da preexistência e as contingências existenciais são situações palingenésicas determinadas pela própria evolução do Ser.


O existencial tem sua causa no essencial, razão pela qual pode-se afirmar, à luz da filosofia espírita, a primazia da Essência sobre a Existência e não o contrário, como sustenta o existencialismo de Sartre. O Ser, ao compreender que existe para a vida e que a morte e o nada não fracionara mortalmente sua realidade existencial, é capaz de amar. Chega a sentir em sua essência a fé e o Crer como base de seu existir e, por conseguinte, vive o ato de amar entre entregando-se ao mundo invisível superior com alegria e regozijo espiritual. O ato de amar se converte em vivência permanente de seu ato de ser e, em tal situação de iluminação, aumenta sua capacidade de crer. Deste modo o Espirito existe para Ser, para Crer e para Amar, o que constitui a mais bela síntese da existência encarnada. O Espiritismo, por ser ciência do Espírito, é o mais potente e real existencialismo do Ser e de Deus. Não há nele lugar para “uma existência que morre”; no Espiritismo só há Existência “que vive no divino e no eterno”. A raiz da existencialidade que nos revela é de vida imortal; por isso o Espiritismo é um existencialismo para vivos e não um existencialismo para mortos.


No Espiritismo não cabem nem a Morte nem o Nada; por conseguinte, é o verdadeiro Existencialismo, cuja base se acha no reexistencialismo, isto é, nas existências sucessivas que o ser atravessa para preencher os campos intelectuais e espirituais de sua consciência.


Todo saber existencial, que resulte impotente ante a morte, anula o ato de amar. Só se ama quando se sabe positiva e mediunicamente que o Ser é imortal e que no invisível se encontra a raiz que sustenta e dá forma ao visível. O amor é a consequência de um saber verdadeiro sobre o Espírito, pois que todo amor ferido pela morte se transforma em dor e desesperação. Para que o amor se manifeste no Ser plenamente, é necessário saber que a morte não é uma realidade e que o Ser vive no divino repetidas representações existenciais (reencarnações) que o aproximam continuamente da Verdade, da Beleza e do Amor.


Os filósofos modernos que buscam sobrepor-se à ideia da morte e do nada deverão recorrer ao Espiritismo, pois só nele está a ciência filosófica e religiosa que supera a morte. Pois quando a cultura dos povos modernos se basear sobre a realidade existencial do Espiritismo, já não haverá senão Espíritos avançados conscientemente para Deus, sabendo que se morre para viver e que todo existir verdadeiro conflui em um ato de amor.


4. SOBRE A FÉ ESPÍRITA

Se a fé é ver com os olhos do Espírito as coisas invisíveis, somente a fé espírita é a verdadeira, pois que é um saber de clarividência. A fé é um plano do ser que lhe permite penetrar na verdade pela sabedoria que nos dão os espíritos desencarnados. Isto porque toda fé sem conexão com a realidade do mundo invisível não é fé viva e criadora, mas sim, uma fé estática e sem vida espiritual.


A fé espírita é feita de ciência e filosofia, isto é, brota na alma pela experiência e a reflexão. Não é um postulado de ciências que responde às necessidades de um dogma. A fé espírita brota da própria alma do homem, pois que é a consequência das relações que mantém com o mundo dos espíritos. Quando a fé não é verdadeira, declina e muda com o correr do tempo; chega o momento em que se esgota totalmente no espírito por motivo de sua própria irrealidade. Daí a decadência espiritual das culturas, das nações e a aparição do ateísmo e do cepticismo.


A crise dos tempos modernos deve-se à falta de fé, apesar do que digam contra os partidários do racionalismo. A razão é a faculdade para medir e julgar as dimensões do mundo visível, mas a realidade não é puramente objetiva se necessita da fé que desenvolve a intuição convertendo-se assim em um instrumento que nos permite penetrar no mundo invisível.


A fé e a razão constituem o homem encarnado. Aí, fé é a essência desenvolvida que o Ser traz de suas vidas anteriores, enquanto que a razão é formada pela experiência sensorial que o Espírito realiza em seu estado de encarnação. Vale dizer que a fé é essência que pertence ao Espírito, e a razão o que se desenvolve com a inteligência, como saber experimental adquirido através do processo palingenésico.


A fé espírita é o extrato essencial deixado pela evolução do espírito. O mais alto do saber é a fé, cujo instrumento, na vida encarnada do Ser é a intuição, que é limitada ou extensa conforme for a acumulação da fé efetuada pelo Espírito.


A filosofia espírita, que reconhece o Ser como uma entidade que encarna e desencarna sem solução de continuidade, mantém que a inteligência sem a fé resulta limitada pela estreiteza sensorial em que se encontra o Ser que, como se sabe, é apenas um modo de apreender o conhecimento. A fé adquirida por uma expansão palingenésica da consciência, em contraposição, resulta para nós em um saber adquirido pela iluminação espiritual do objeto conhecido. A fé é capaz de ultrapassar o universo da forma, enquanto que a inteligência permanece aderida ao puramente formal. A fé é também inteligência, mas é um saber baseado na essência das coisas; poderíamos dizer que a fé é um saber inspirado que se faz magnifico em um saber mediúnico, o qual transfigura-o, fazendo-nos ver que todo conhecimento autêntico provêm do mundo dos espíritos.


A fé espírita é um saber do mundo espiritual; sua essência está formada por uma evolução da consciência e por uma constante comunicação da alma com o invisível. Dai resulta que todo o verdadeiro saber necessita crer em Deus e na verdade do Ser como espírito encarnado. Só assim se completará esse tipo de homem, capaz de sobrepor-se à morte e ao nada. Deste modo é que se reconhecerá que toda existência tem sucessivas e múltiplas existências, pelas quais o Ser se desenvolve amplamente até ressoar com a realidade invisível do Universo.


Um saber sem fé não completará nunca o Ser do homem encarnado, pois que, enquanto a fé não ponha em movimento a intuição, o homem permanecerá na epiderme do conhecimento e não se reconhecerá a si mesmo como uma entidade espiritual permanente e imortal. O pensamento à luz do Espiritismo é um fenômeno intelectual que se conquista pelo ato da encarnação vivido pelo Ser. Mas o pensamento logo se elabora, intimamente, até alcançar um refinamento tal que se transforma em essência do Ser e do Saber. Não esqueçamos de que o Ser é uma manifestação do Espírito sobre a base de seu processo palingenésico que o transfigura cada vez mais, até elevá-lo ao plano dos Espíritos puros.


As verdadeiras faculdades mediúnicas (repare-se que são faculdades) são o resultado de uma grande acumulação no ser de fé e de saber que permitem ao espírito encarnado comunicar-se com o mundo invisível. A isto Kardec chama mediunidade facultada, pois que está unida à evolução do Ser e é uma consequência dessa mesma evolução. De modo que a fé espírita é um estado superior de evolução que, à luz do Espiritismo, se pode anunciar como uma realidade.


Antes do advento da filosofia espírita a fé era uma coisa imposta ou sugerida à força de dogmas e crenças e se desmoronava ante a análise da razão. Por sua vez, a fé espírita quer dizer a iluminação da alma por diversas vivências espirituais do Ser e surge como uma consequência de profundas convicções acerca da existência do Ser e do mundo dos Espíritos. Este fato fez Kardec dizer que “a fé inabalável é aquela que pode olhar a razão em todas as idades da humanidade”.


Com este pensamento, o mestre espírita quis expressar que a cultura viverá diversas idades resumidas na científica, na filosófica e na religiosa; a fé espirita não será confundida porque o saber espiritual se converterá em sabedoria divina, para conhecer cada vez mais e melhor o Espírito e o Universo.



Fonte: RIE - Revista Internacional de Espiritismo, Matão-SP.


Humberto Mariotti (1905-1982), poeta, escritor, jornalista, conferencista e intelectual espírita argentino. Presidiu a Confederação Espírita Argentina em 1935/1937 e 1963/1967. Esteve, junto com Manuel S. Porteiro, no Congresso Espírita Internacional de Barcelona (1934). Foi também vice-presidente da Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA) em duas gestões. Escreveu, dentre outras obras: Dialéctica y Metapsíquica; Parapsicologia y Materialismo Histórico; El Alma de los Animales a Luz de la Filosofia Espírita; En Torno al Pensamiento Filosofico de J. Herculano Pires; Victor Hugo, el Poeta del Más Allá.

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