quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

MISTIFICAÇÃO E ESOTERISMO: OS RISCOS DO ESPIRITUALISMO

Por Humberto Schubert Coelho


Todo o tipo de espiritualismo, que não deve ser confundido com religião, possui vantagens e desvantagens muito particulares. Isto porque o espiritualismo é um conjunto de princípios filosóficos que se propõe a explicar o cosmo em contraposição ao materialismo. Esta contraposição resume-se tão somente em defender a existência de um elemento espiritual no universo, seja intelectual ou apenas volitivo.




Schopenhauer e Nietzsche, embora ateus, não são de modo algum materialistas, senão marcadamente espiritualistas, pois acreditam numa força imaterial (e, portanto, espiritual) intrínseca ao universo, a vontade. O Budismo, além de apresentar vertentes ateístas nega também uma realidade concreta ao intelecto e a vontade conforme as entendemos, mesmo assim também pode ser considerado espiritualista, pois para os budistas a matéria é um subproduto da natureza mental-volitiva do eu. A maioria dos espiritualistas, porém, crê em Deus ou numa força absoluta, dotada de realidade concreta.




Os espiritualistas concordam quanto à insuficiência dos sentidos na apreensão da realidade. Para eles, é necessária uma espécie de intuição ou sensibilidade especial para o elemento sutil da vida enquanto tal que transcende a materialidade, e, portanto, os sentidos físicos.




Nietzsche identificava através desta sensibilidade metafísica uma pulsão vital, a vontade de poder, que orientaria a evolução das espécies e produziria formas cada vez mais fortes, até culminarem no super-homem. Já os Yogis acreditam investigar diretamente a energia sutil através de técnicas refinadas de meditação e controle respiratório, de modo a adquirirem suas habilidades extraordinárias, especialmente a resistência a todo o tipo de desconforto e privação material. Judeus, cristãos e muçulmanos acreditam numa espécie de capacidade intuitiva para reconhecer a validade dos profetas, de modo que o “espírito reconhece o espírito”, e suas escrituras compartilham um elemento bem seletivo que identifica as almas propensas à recepção da mensagem divina como dotadas de “olhos e ouvidos espirituais”.


 


O Espiritismo leva ao extremo o enfoque na sensibilidade espiritual, apontando para o intercambio permanente entre o mundo físico e o além, para a interconexão entre todos os seres, vivos ou mortos, e enfatizando a capacidade universal de movimentar energias sutis através de qualquer ato mental.


 


Todas as formas de espiritualismo, exatamente por trabalharem com esta sensibilidade para os fenômenos mais discretos e sutis da natureza, correm o risco de superexcitar a imaginação, dando margem a todo tipo de superstição e crendice. É, portanto, um risco grave para os espiritualistas a falta de cautela em relação a novidades, modismos e personalismos.


 

O Espiritismo em particular prega o trato científico dos elementos espirituais da natureza, buscando evitar exatamente a proliferação de crenças e dogmas conflitantes quão ineficazes. E conquanto seja difícil manter o Espiritismo sob a tutela de rigores científicos, estando ele difundido em todas as camadas da sociedade, as referencias mínimas ao método crítico permanecem questão de urgência se o que se pretende é evitar a progressiva fragmentação em seitas esotéricas.


 

Fique bem entendido que não apoio qualquer discriminação contra grupos que comportam novidades e particularidades, mas a definição de esotérico é a mais apropriada neste caso. Isto porque esotérico corresponde àquelas comunidades privilegiadas por um conhecimento que outros não possuem, ou com tradições, práticas e regras que só são conhecidas ou restritas a esta comunidade. Esotérico não é um equivalente para insensato ou irracional, mas para alguém ou alguma sociedade que acredita estar em posse de uma revelação especial. Embora isto seja possível, não é recomendável, pois quem se acredita na posse de um privilégio destes não tem como averiguar sua veracidade de forma racional.


 


O Espiritismo nega firmemente a idéia de uma revelação restrita ou especial para um grupo étnico ou religioso qualquer, e isto por motivos científicos e filosóficos. Científicos porque um fenômeno natural tem de apresentar-se universalmente, e não apenas para os crentes. Filosófico porque este privilégio contraria a justiça divina, senso absurdo supor que um conhecimento benéfico ao gênero humano fosse reservado a um grupo de eleitos.


 


Quando os romanos se queixaram a Paulo, alegando que os judeus tinham uma tradição profética que facilitava a vida regrada, o apóstolo dos gentios rebateu como absurda a idéia de que Deus só revelara suas leis aos judeus: “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das cousas que foram criadas. Tais homens são por isso indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus não o glorificam como Deus... antes se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos, e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem do homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis... Pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura, em lugar do Criador...” ROMANOS: I, 20.


 

O que Paulo já estabelecia nas epístolas só aumenta com o surgimento da ciência e a Idade da Razão. A revelação não pode contrariar o conhecimento comum, nem a fé contradizer a lógica e a observação mundana. Por mais que haja formas complementares de conhecimento, todos devem submeter-se aos critérios de validade pública para que possam integrar um corpo doutrinário coerente. Ao assumir uma revelação exclusiva estaremos cortando os laços com os critérios de validade universal do conhecimento, que consistem na exposição e discussão pública dos fenômenos. O fenômeno mediúnico já é por demais melindroso para que descuidemos de uma averiguação cuidadosa.


 


Para evitar os personalismos e a criação de facções esotéricas, cada qual pretendendo gozar de informações específicas e privilegiadas sobre o mundo dos espíritos, Kardec formulou cláusulas científicas e racionais muito precisas. Entre elas citamos só de passagem o controle universal do ensino dos espíritos e as repetidas afirmações de Kardec e dos espíritos sobre o privilégio da dúvida sobre a certeza.




O controle universal do ensino dos espíritos é o fio da balança científica de Kardec. Como a maioria dos fenômenos é de caráter intelectual, e a sua medição física impossível, o julgo científico da doutrina espírita não pode prescindir de um controle comparativo das comunicações em si.


 

 

Ao tempo de Kardec já haviam inúmeras teorias e até mesmo crenças enraizadas sobre a natureza do mundo espiritual, de modo que ele identificou suas contradições e os perigos de mistificação inerentes a prática da mediunidade. A resposta técnica para o problema foi o da amostragem geral das comunicações espíritas em diferentes cidades e países, por diferentes médiuns e preferencialmente através de comunicações espontâneas.


 

 

Desta forma elimina-se toda a possibilidade de personalismo, pois os julgamentos são baseados na maioria dos resultados, e não naqueles peculiares a este ou aquele grupo. A semelhança ou unanimidade em relação a temas muito complexos, a identidade de terminologias, metáforas, exemplos e hipóteses vindos de médiuns desconhecidos e em condições incomunicáveis, depõem contra qualquer possibilidade de adotar-se uma concepção formulada por influencia do meio ou da personalidade dos médiuns.



Adicionalmente ao controle universal das informações Kardec propunha a postura crítica mais rigorosa mesmo em relação aqueles conhecimentos que parecessem unânimes majoritários entre os médiuns. Longe de adotá-los apenas segundo o critério “democrático” do controle universal, expunha-os ao crivo da razão e questionava a sua pertinência, coerência, aplicabilidade e se a teoria em questão acrescentava algo ao que já se sabia.




Sem condenar o esoterismo, podemos afirmar categoricamente que ele não pertence à prática espírita, e que inclusive a confronta. Por estas razões somos forçados a reconhecer que toda a forma de esoterismo constitui uma agressão dos princípios mais básicos do Espiritismo. Não obstante, as influencias esotéricas são perceptíveis e até frequentes entre adeptos do Espiritismo.




Com base na definição feita até aqui discriminamos com segurança alguns dos elementos esotéricos que não poderiam figurar entre os ensinos e práticas dos espíritas:


1- Os rituais: Pois todo tipo de ritual é, por definição, uma imposição comportamental que prescinde de justificação. O passe a fluidificação da água, por exemplo, são amplamente justificados dentro dos conceitos espíritas referentes aos fenômenos naturais, e se estabeleceram por confirmação de seus resultados positivos através da experiência. A preferência por roupas ou adereços da cor branca, por outro lado, não possui nenhuma destas prerrogativas, sendo difundida de modo dogmático e ritualístico, por forca de tradição e argumentos de autoridade. É, pois, uma prática esotérica, na medida em que seus defensores alegam haver razões para o seu uso, mas estas "razões" não são justificáveis de forma realmente lógica, apenas aceitas como revelação dos espíritos.


 

2- Todas as revelações provenientes de uma só fonte: Uma vez que só podemos garantir uma análise racional de informações amplamente verificadas através de vários médiuns sem predisposição prévia a determinadas idéias. Assim, todas as informações extras transmitidas por via mediúnica devem ser colocadas primeiramente sob suspeita até que se comprove a sua suficiente justificação racional, não importando para isto o renome do médium. Desta forma, a revelação dos casos de licantropia, claramente um acréscimo em relação às informações de que já se dispunha na época de Kardec, só estabeleceu-se como plausível por sua concordância lógica com a Doutrina dos Espíritos, já que se sabe que o perispírito é elemento plástico submisso ao pensamento e que imagens e fixações patológicas podem imprimir-lhe condensações energéticas de longo prazo, e também porque esta informação foi repetida por múltiplas fontes seguras e independentes. Por outro lado, revelações que não possuam sintonia direta com a Doutrina dos Espíritos e que se liguem exclusivamente a um médium ou espírito devem ser desconsideradas sem maiores preocupações como não-espíritas. Enquanto não se firme racional e empiricamente toda a inovação nas revelações mediúnicas deve ser tida como esotérica, ou seja, incomprovada, restrita a classe de revelações especiais a determinado grupo ou pessoa, o que não quer dizer que seja obrigatoriamente falsa.


3- Toda a informação importada de outro sistema não científico: É comum entre os espiritualistas flertar com outras denominações análogas. Mística indiana, sobretudo o yoga, acumpultura, tai chi, umbanda, xamanismo, cartomancia e outras práticas são todas mais ou menos enquadráveis como esotéricas. Novamente isto não implica a sua falsidade, apenas a sua insuficiência em justificar-se racional e cientificamente. Os seus praticantes e os espíritas simpatizantes devem ter a honestidade de não atribuir a estes processos o nome de ciência, a não ser de modo muito genérico, como conhecimento e experiência adquirida. Alguns destes possuem até um aspecto científico, mas abraçam elementos rituais, revelações não racionalizadas, simbolismos e hábitos injustificados transmitidos por autoridade da tradição, sendo desta forma, ao menos parcialmente, esotéricos. Na medida em que sejam esotéricas, nenhuma doutrina espiritualista possui afinidade com o Espiritismo. Isto não é uma condenação a estas práticas, mas uma exigência de que se apresentem despidas de seus elementos esotéricos, para que então possam ser aceitas de acordo com os critérios de racionalidade do Espiritismo.


 

 

Fonte: Filosofia & Espiritismo. http:/filosofia espiritismo.blogspot.com./

3 comentários:

  1. Só fiquei foi curioso, em saber qual vertente do Budismo o Autor considera como Ateísta. Essa realmente é nova para mim. Acho que o Autor esta confundindo a Doutrina do Olho com a Doutrina do Coração de Budha. Isso é tipico de estudiosos fixados na Abordagem Teologica Judaico-Cristã e da Abordagem Filosofica Ocidental. Por Sésio Santiago.

    ResponderExcluir
  2. Humberto Coelho (Autor): "Realmente meu olhar sobre o Budismo é exterior, como não poderia deixar de ser para quem não é e não convive num meio budista. Meu comentário visa exclusivamente expor uma versão da epistemologia budista, não de seu corpo doutrinário. A divisão entre as doutrinas do olho e do coração já responde por esta segunda fase discipular da tradição budista. Como pretendo tratar da filosofia propriamente dita, não da teologia ou da religião budista em geral, enfoquei o problema epistêmico-metafísico que está presente no cânone pali, em especial nas preleções do Dhamapada e no Prajna Paramita Sutra. Veja, por exemplo o texto sobre budismo em meu blog www.filosofiaespiritismo.blogspot.com. Peço encarecidamente desculpas a todos os especialistas em budismo, pois todas as minhas análises visam um diálogo com tradições que respeito, mas das quais certamente conheço muito pouco.

    ResponderExcluir
  3. Sésio. O Autor foi sincero e deixou claro sua forma parcial em ter analisado a própria epistemologia de uma tradição que é bastante complexa dentro do âmbito da própria teoria do conhecimento. Com relação a abordagem metafísica sobre a tradição budista é muito importante deixar claro que é bastante complicado tentar utilizar o modelo Espírita como parâmetro de comparação com o pensamento de uma tradição que utiliza como meta suprema do conhecimento aquilo que a tradição Grega Denominava por Noumenos, algo que esta alem da teoretica forjada pela mente, uma vez que a própria mente para vários ramos da tradição Budista é assassina do Real.

    ResponderExcluir