domingo, 30 de setembro de 2012

Reflexões Kardecistas Sobre o Pecado

Por Jaci Regis
 
Analisando o comportamento humano deste fim de século, uma onda de perplexidade e medo domina a sociedade. Comparações são inevitáveis. Seria verdadeiro dizer que antigamente era melhor? Que as pessoas eram mais fraternas, mais caridosas, mais cheias de fé, as virtudes capitais do cristianismo? Enfim, houve retrocesso? Parece válido fazer uma digressão histórico-filosófica para entender o processo de mudança que se acelerou tanto neste século 20. Afinal, não há efeito sem causa.
 
 
No início da Idade Média, a Igreja, afirmando obedecer determinações divinas e apoiada no poder temporal, estabeleceu como paradigma para a felicidade pessoal e social, a figura do homem virtuoso e temente a Deus. Por mais de dez séculos sua força foi muito grande e estabeleceu uma consciência individual e coletiva acerca do que era certo e errado. Qualquer desvio, intenção ou impulso contrário ao que foi estabelecido como certo, era pecado. O pecado e o diabo foram armas poderosas, supersticiosas, que também se incorporaram à mente social.
Era preciso mostrar-se virtuoso, sob pena do expurgo social, condenação da Igreja, com punições que incluíam a morte física. Então, as pessoas se organizaram de modo a, pelo menos, aparentar essas virtudes ou recorrer às absolvições. A maioria se acomodava, reprimia impulsos e desejos, considerando, em si mesma, repulsiva a simples ideia de pensar ou ser levada a pensar neles.


A estrutura social foi montada em rígida hierarquização de castas, que foi dito ser natural, estabelecido pela divindade. Por isso, a maioria curvou-se a ela, aceitou seu destino. O convívio familiar refletia o estrato social, de maneira que o pai era o senhor e os filhos, sob certa forma, os servos.


A virtude foi imposta como um fardo pesado, porque se ignorou a realidade pessoal e como mero anteparo aos impulsos, ao desejo. Vencer os impulsos, reprimir o desejo era a meta. A recompensa viria no céu. Ceder aos impulsos e ao desejo era caminho para o inferno. Tudo isso criou um simulacro de virtude, adotado pela sociedade, enquanto no interior de cada pessoa persistia o nebuloso sentido de que a virtude era uma cruz pesada. Frequentemente, contrária à natureza. Isso esclarece porque, cessada a força coercitiva pela falência da autoridade externa, o impulso interior e o desejo do prazer ressurgem muito fortes
 

A LIBERAÇÃO TOTAL


A sociedade medieval foi sendo substituída ao longo do tempo. Ventos de liberação, a princípio tímidos, derrubaram as máscaras, desvelando a face da real condição humana. Um após outro, os tabus foram sendo quebrados. As regras morais abandonadas ou questionadas, sem que se colocassem opções válidas.

Os últimos obstáculos foram finalmente derrubados neste século 20, onde duas grandes guerras mundiais mostraram a face do horror, enquanto as populações cresceram, povos se ergueram em busca de identidade, sociedades superaram o jugo colonialista.


A queda do poder regulador das religiões, que impuseram o formato da moral social, deixou milhões sem um guia respeitável e seguro. A segurança que, mal ou bem, agasalhava as almas mais frágeis — e quem não o é — foi-se.   E agora?  Some-se o avanço da ciência, materialista por definição, às ideologias políticas também sem qualquer ligação com a espiritualidade, com o fracasso da religião. O que sobra? Mesmo assim, seria verdadeiro afirmar que, com 6 bilhões de habitantes, nosso planeta azul tem uma população moralmente inferior à da Idade Média ou anteriormente à ela?


Por fim, o grito de liberdade das mulheres no Ocidente (no Oriente virá logo), com a comunicação eletrônica, pelo rádio, televisão, internet, cinema e meios gráficos cada vez mais atrativos tornaram nosso mundo muito diferente, ágil, dinâmico, caótico e problemático. Como se diz, houve a liberação total. Aleatória e emocional, a liberação parece desconhecer limites e joga os incautos num espaço indefinido. O egoísmo, o culto do “eu” surgem como caminho de realização, não sem causar confusões no ser.


Desvalorizada, pressionada, condenada, a criatura humana ansiou recuperar o ar de liberdade, a que, afinal, não estava propriamente acostumada. Como seria de esperar, os mais afoitos ou desequilibrados, vão aos extremos, na vã ansiedade de preencher o vazio com comportamentos exóticos, provocativos e niilistas. O corpo, antigamente desprezado, ocultado, agora é motivo de exploração inédita. Valorizado, adorado, desnudo, é sede de emoções sexuais que entram pelo visual e aquecem a mente, embrulhando mais do que se supõe o precário equilíbrio das almas humanas.


OS SETE PECADOS CAPITAIS


Tanto a Igreja Católica como a Reforma Protestante sempre se utilizaram do pecado e do diabo como formas de coerção e medo. Os sete pecados capitais, que teriam sido propostos por Santo Agostinho, eram apontados como caminhos sem volta para o abismo e a perdição.


A reação moderna foi, justamente, louvar o pecado. Como afirma Roberto Carlos na sua música, “tudo o que eu gosto é ilegal, é imoral ou engorda”. O pecado virou atrativo, gostoso, inevitável. O egoísmo perdeu o disfarce e o que importa é a satisfação do ego. Desvalorizada, pressionada, condenada, a criatura humana ansiou respirar o ar da liberdade


O corpo, considerado caminho da perdição, lugar dos instintos, antes escondido, velado, foi desnudado, mostrado, endeusado. A sexualidade, ancestralmente reprimida, condenada, virou objeto de consumo. Viva o prazer!  O prazer é o natural. Mas, que prazer? Eis a questão a ser resolvida nos próximos anos...


Por ora, a filosofia mudou. Não se procura o ser, o ser do ser. Não se debruça sobre a natureza do homem, transcendendo o percurso berço-túmulo. A ciência e o materialismo redefiniram o ser humano: não mais o ser com corpo e alma, mas o ser de corpo sem alma. A educação, as diretrizes vivenciais passaram a se basear exclusivamente no aqui e agora, sem transcendência espiritual.


Diariamente, a mídia lança no ar, nos jornais, nas televisões, propagandas e afirmações mentirosas, com o intuito não disfarçado de obter vantagens e mostrar que os mentirosos são espertos, vencedores. Fragrantes diários de mentira estão nos artigos de consumo, com qualidade, peso e preço mentirosos, embalados em caixas e plásticos coloridos, para não citar a natural qualidade geralmente encontradas em políticos, mestres na utilização pessoal da mentira.


Todo o esquema econômico ataca as pessoas, explorando os sete pecados capitais, estabelecidos pela religião. A industrialização infernalizou a vida social. O ser humano foi reduzido à condição de consumidor. A propaganda estimula o consumo, através da exploração dos sete pecados capitais.


Nenhum apelo às virtudes, na forma como sempre as considerou. O Amor foi engolfado pelo sensual, o sexo pelo sexo, sancionando a luxúria. Beber e comer deixam de ser atitudes naturais para se transformarem em formas de realização pessoal, com destaque para as bebidas que mudariam segundo a propaganda, até os pensamentos, exaltando a gula.


A cobiça é colocada como forma de energia pessoal, seja de objetos, de pessoas e situações, na busca de status. Invejar já não é pecado, mas uma forma ativa de gerar promoções pessoais, vencer competições e deixar o outro para trás. A avareza é sustentada como um ato lícito, sendo incensados e admirados os que acumulam milhões, sem considerar a licitude de suas riquezas, apresentados como vitoriosos, mesmo que paguem salários baixos ou desprezando a miséria em torno.


A preguiça ganha notoriedade. Não trabalhar e viver sem esforço é visto como o paraíso. Milhões sonham com favores ou sorte ou aguardam ansiosos a aposentadoria precoce para nada fazer ou são estimulados ao lazer pelo lazer. Playboys e mulheres arrojadas vivendo à toa são mostrados como modelo a ser seguido.


A ira tem seu elogio nas reivindicações nos motins, nas formas agressivas adotadas por pessoas e grupos. Depois da ira de Deus, apregoada por messias e missionários, temos a ira popular, nacionalista ou coletiva, tolerada e estimulada por interesses vários. Falar em vaidade no momento atual é pleonasmo. Tudo gira em torno da beleza mesmo artificial, postiça ou eventual. A modéstia e a simplicidade foram arquivadas como objetos sem uso desejável.


Evidentemente que as modificações no cenário econômico e mesmo, limitadamente, o apelo ao consumo tem um lado positivo, pois o bem-estar é direito de todos. Mas também desafiando o equilíbrio dos mais centrados, estimulado o desequilíbrio latente dos dúbios e abrindo as portas aos descentrados.


A exaltação do ser consumidor confere-lhe o poder. O poder de compra ressalta o valor da pessoa, que dispondo de recursos monetários, usufrui das vantagens do mundo moderno, um inferno de prazeres, oportunidades de gozo e lazer. É como se a humanidade se livrasse de um manto pesado e escuro. Aparentemente tudo pode ser feito, alcançado e é lícito


Mas, o outro lado da moeda continua existindo, chamando à reflexão e impondo caminhos não desejados. Os agentes desse processo de infernalização social não estão imunes aos ataques de suas próprias necessidades interiores. E, sobretudo, não poderão se esquivar da morte. Enquanto não vem a doença, os males e os problemas psicológicos, todos se julgam acima do bem e do mal.


A REAÇÃO


Enquanto os elementos mais desagregadores da sociedade, através da mídia, principalmente, usufruem, irresponsáveis, o sucesso de suas incursões, produzindo filmes, programas de televisão, editando revistas e jornais, motivando e estimulando comportamento insensatos, atos ilícitos e até criminosos. Enquanto isso a juventude parece muito desarvorada, aderindo a formas destrutivas de vivência, parte dela entregue às drogas, ao álcool e cigarro, sem bandeiras visíveis, uma parte mais responsável pergunta-se: como enfrentar e resolver ou, pelo menos, encaminhar uma maneira de conduzir a vida de maneira menos perigosa e mais produtiva. Alguns chegam a temer o futuro. Mas a história mostra que haverá sempre uma saída, nem sempre a mais satisfatória, mas que, por um determinado tempo, apazigua o ambiente litigioso. Qual será, porém, a solução?


Não podemos profetizar como as soluções se encaminharão. Indicamos “soluções” porque serão plurais. Resultarão da convergência de fatores que se erguerão diante dos conflitos, das descobertas da ciência e das necessidades insuperáveis das pessoas.


■ A Volta da Religião

Uma das formas para enfrentar o desequilíbrio seria a volta do apelo religioso. Além das igrejas tradicionais, outras mais agressivas entram em cena, prometendo o paraíso aos seus adeptos. Entretanto, não oferecem um rumo de libertação. Ao contrário, tentam, de alguma forma, mais sofisticadas e modernas, reviver a repressão, o pecado e o diabo, retendo as mentes no patamar da negação e do medo. Os que se sentem perdidos ou cronicamente inseguros, voltam-se para elas, querendo o apoio dos poderes divinos que as igrejas afirmam representar. A evangelização, afirma-se, é a salvação.


Os católicos evangelizam.
Os protestantes evangelizam.
Os espíritas cristãos evangelizam.


Todos explicam e indicam os evangelhos e vêm em Jesus Cristo, a fonte de toda a verdade, o doador da vida. Evangelizar seria, enfim, o remédio para todos os males. Entretanto, essa evangelização incorre nos mesmos erros antigos. Via de regra, cria crentes, dá uma crença. O crente ouve as preleções e alguns se movem no sentido da caridade, mas a maioria parece acreditar que sua adesão à evangelização representa uma espécie de seguro de vida contra os problemas.


Os protestantes pentecostais são estimulados a acreditar que a crença em Jesus Cristo lhes dará saúde, prosperidade e segurança. Os espíritas cristãos, por sua vez, podem crer que sua adesão à evangelização garantirá a proteção dos bons Espíritos. Os católicos se agasalham sob o manto dos santos, esperando milagres, graças e segurança.


O grande movimento de evangelização parece desenvolver-se dentro de uma visão circular e egoística, criando uma legião de adeptos determinados a se salvar ou obter algum resultado palpável. Pelo menos, não produz imediata influência sobre a população.


■ Apelo à Ética

Também os ateus e materialistas tentam reagir ao estado das coisas, apelando para os valores éticos. Fale-se em ética, mas num sentido estritamente legalista, jurídico, constitucional. O compromisso ético pode ser formal, embora útil, aprisionado aos fatores eventuais da vida terrena, segundo a visão materialista.

■ Solução Política

No quadro caótico — falamos especificamente da realidade brasileira — muitos acreditam que a solução será, antes de tudo, política, isto é, pela melhoria da distribuição da renda, ao acesso amplo e ilimitado à educação, com a criação de empregos, dando condições dignas de habitação, saúde e saneamento à população carente ou marginalizada.
 

Na verdade, numa sociedade que exalta o consumo, quem não tem o poder de consumir se sente e é, por isso, excluído. E ninguém aceita ser excluído definitivamente, gerando as tensões e explosões sociais, necessárias para mover a inércia das elites.


Todavia, já tivemos experiências em que se supunha que uma igualdade de classes, uma economia planejada, centralizada e estatal, com eliminação do lucro, seria a solução. E não foi, ainda que tenha obtido algum resultado, à custa do cerceamento da liberdade, perseguição, mutilações e chacinas. Um preço muito alto, para muito pouco. Parece que só na democracia é possível alcançar os resultados desejados, mesmo que, aparentemente, demore mais. Progresso sem liberdade é quimera, é falso.


A ESPIRITUALIZAÇÃO


Entretanto, a solução real só virá com a espiritualização das relações humanas. Parece, à primeira vista, que é uma solução ingênua. Como espiritualizar se as religiões, que se encarregaram da parte espiritual da humanidade, são impotentes ou mantém-se em patamares superados? Apesar disso, somente a visão da natureza espiritual do ser humano dará uma luz no escuro caminho da sociedade contemporânea.


Sem que a visão espiritual da natureza humana prevaleça, as soluções serão precárias e incompletas. Essa visão espiritual, correspondendo à espiritualização da vida, não será produto de religião alguma, mas do amadurecimento e das pesquisas. Na verdade, será o ponto decisivo e moldará o pensamento humano de maneira a transformar a relação entre as pessoa.


A espiritualização é mais do que crer; é dar um sentido humanista, livre e aberto à vida, em que a natureza espiritual da pessoa se sobressairá como agente de mutações profundas. Será baseada na imortalidade e na reencarnação, como elementos decisivos no processo de renovação da sociedade, sempre que representarem uma visão ampla, liberta do processo vivencial e não apenas instrumentos limitados de punição ou expiação moral.


Espiritualizar é transcender o horizonte materialista, sem desprezar a existência ou maldizer a relação humana. Ao contrário, é, sob certa forma, aprimorar o humano, projetando-se para um compromisso dinâmico com a vida.


Nesse sentido, pode-se admitir até o que Allan Kardec preconizava no início da criação do Espiritismo. A espiritualização, dando um novo sentido à existência da pessoa e da vida terrena, não significará, por não ser uma crença, a unanimidade ou a homogeneização psicológica e formas de ver a partir desse núcleo central. Por isso, poderá admitir várias formas de crenças, como visões particulares, conforme as necessidades de pessoas e grupos, que se acomodam ao nível evolutivo de cada um.
 


Fonte: Abertura - jornal de cultura espírita, março de 2000. Licespe – Santos-SP.


Jaci Regis (1932-2010), psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi o fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”, “Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.


sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Expressão Filosófica do Espiritismo


Por Deolindo Amorim

Disse Allan Kardec que a força do Espiritismo está em sua filosofia, justamente porque faz apelo à razão, ao bom senso. Poder-se-ia estranhar o fato de haver o codificador da Doutrina Espírita dado tanta ênfase à razão, quando se sabe que o seu trabalho começou exatamente pelos fatos mediúnicos. E o Espiritismo realmente apoia-se nos fatos, nas provas, na experiência, como se diz a todo o momento. Mas uma proposição não invalida a outra. A parte experimental ou fenomênica continua a ser indispensável à investigação espírita. Sob este ponto de vista, parece-nos até exagero desprezar inteiramente a parte mediúnica como quem diz: “a época do fenômeno já passou”, não há mais necessidade dos médiuns. Não é bem assim. Os médiuns surgiram ontem e surgem hoje porque são necessários. E não seria possível, em último caso, excluir a mediunidade do Espiritismo e, portanto, acabar definitivamente com as sessões mediúnicas.

FENÔMENOS

O lastro experimental, com a apresentação de fatos comprobatórios, ainda é uma necessidade, pois estamos muito longe, por enquanto, daquele estágio evolutivo em que a mediunidade ficará no puro domínio da intuição, como diz a própria Doutrina. Será uma expressão muito elevada, em função, porém, do tempo e do melhoramento espiritual do ser humano. Claro que a prática mediúnica, como geralmente falamos, precisa de condições básicas: honestidade pessoal, perseverança, lucidez e prudência do verdadeiro espírito científico. A mediunidade exercitada a esmo, embora bem-intencionada, como acontece muitas vezes, tem os seus riscos.
INSUFICIÊNCIA

Então, sem perder de vista o valor do estudo filosófico, a que Allan Kardec atribui influência decisiva, é lógico entender que o aspecto mediúnico sempre teve e tem o seu momento de necessidade e relevância, seja pelo consolo das mensagens, seja pelos elementos de estudo e reflexões que oferece.

Mas, o Espiritismo se contém todo ele no campo mediúnico, conquanto este lhe tenha servido de ponto de partida, como se sabe. O fenômeno por si só não nos levaria a consequências profundas, ou seria apenas objeto de observação ou motivo de deslumbramento, sem a formulação filosófica. Justamente por isso — repetimos Kardec — “a força do Espiritismo está em sua filosofia”. E por que não está no fato mediúnico? Porque o fato prova e convence objetivamente, não há dúvida, porém não elucida os problemas mais graves de nossa vida, por si mesmo, se não tomar a direção filosófica que conduz à inquirição das causas, dos porquês e das consequências.


FILOSOFIA

A comunicação dos espíritos demonstra praticamente a sobrevivência da alma “após a morte”. É o elemento básico. Mas, é preciso partir daí para as indagações que compreendem especialmente o destino humano e as consequências morais do Espiritismo.

A esta altura já é esfera da filosofia e, a força do Espiritismo — não faz mal insistir neste ponto — está exatamente nesse corpo de princípios, em cuja homogeneidade e coerência encontramos respostas às mais complexas e momentosas questões de nossa vida: a existência de Deus, a justiça divina e as desigualdades morais, intelectuais e sociais, livre-arbítrio e determinismo, a reparação do mal pelas provas, o reajuste de compromissos do passado através das experiências reencarnatórias. São temas de reflexão filosófica. Entretanto, a Doutrina estaria incompleta se não decorressem daí as consequências morais com que nos defrontamos a cada passo.

NEUTRALIDADE

Quem, por exemplo, gosta apenas de ver sessões mediúnicas, porque acha interessante ouvir os conselhos dos espíritos ou conversar com os médiuns, mas não vai além deste hábito, que se transforma em rotina com o decorrer do tempo, naturalmente não tem uma visão global do ensino espírita. Conhece o Espiritismo apenas pela parte fenomênica, que é muito rica de lições e sempre tem o que oferecer para estudo e meditação, porém não abre horizonte mais amplo a respeito das leis e causas a que o fenômeno está sujeito. Há pessoas, por exemplo, que se interessam muito pelo lado experimental do Espiritismo e fazem realmente estudos sérios, mas encaram o fenômeno do intercâmbio entre dois mundos com a mesma neutralidade ou frieza com que os especialistas lidam com os fenômenos da física ou da eletrônica, e assim por diante. A preocupação é exclusivamente com o fenômeno puro e simples.

E daí? Que resulta de tudo isso? Sim, o fenômeno da comunicação entre vivos e mortos é neutro até certo ponto, uma vez que sempre ocorreu no mundo, muito antes das civilizações e, portanto, do Espiritismo. E pode ser observado e registrado em ambientes não-espíritas, como também pode ser discutido à luz de critérios diversos, nas áreas da parapsicologia, psiquiatria, antropologia etc., sem nenhuma cogitação quanto às causas e consequências. Se o psiquiatra se volta para a procura da anormalidade, já o antropólogo vê o fenômeno dentro de um contexto cultural sem implicações de ordem transcendental, como se costuma dizer.

CONSEQUÊNCIAS

Quando, porém, o fenômeno está situado no contexto espírita, já não é tão neutro, porque assume um valor moral muito especial e, por isso mesmo, não pode ser considerado indiferentemente, como se estivesse em laboratório de física ou de química. O fato de o espírito entrar em comunicação com o nosso mundo pela via mediúnica, já pressupõe muita responsabilidade para o médium e, também, para quantos tenham de lidar com esse tipo de trabalho.

Há necessidade, portanto, de um preparo moral indispensável. Já se vê que a situação, agora, é bem diferente. E por que, finalmente, o Espiritismo engloba o fato mediúnico numa contextura filosófica de consequências tão acentuadas? Exatamente porque a verificação de que os mortos continuam vivos e vêm até nós, identificando-se, interferindo em nossos atos, “chorando as suas mágoas” ou trazendo alegria e esperança, confirma a tese capital de que a vida continua no tempo e no espaço.


Partimos daí, desse princípio essencial, para a especulação filosófica das origens e do chamado sobrenatural. O próprio impulso da sede de saber naturalmente nos leva a propor questões desta natureza: que significa esse intercâmbio em nossa vida? Qual o ponto inicial, a causa primária dessa força ou dessa inteligência aparentemente misteriosa? Que benefício poderá esse tipo de conhecimento trazer para o homem e a humanidade? Começamos a sentir o conteúdo ético e filosófico do Espiritismo desde o momento em que lhe avaliamos a profundidade e a integridade como Doutrina capaz de corresponder às nossas preocupações com o desconhecido e o nosso próprio destino.

ÉTICA

Mas, a especulação filosófica, embora necessária e valiosa, ainda não é suficiente para atender satisfatoriamente às necessidades do ser humano quando desperta para os problemas espirituais. Torna-se necessário, senão indispensável, além deste passo no conhecimento, procurar as consequências dos princípios espíritas na vivência individual e coletiva. É aí, principalmente, que se sente a força do Espiritismo em sua filosofia, porque:

a.) Em primeiro lugar, abre larga perspectiva à inteligência inquiridora, oferecendo-lhe elementos de convicção acerca da vida futura e de uma justiça superior;
b.) Em segundo lugar, porque, superando as ideias e os hábitos oriundos de escolas ou crenças antigas, renova profundamente a concepção de vida e modifica a posição do homem perante as leis da natureza, perante o próximo, perante a sabedoria divina;
c.) Em terceiro lugar, porque as aplicações dos princípios espíritas fortalecem e esclarecem o sentido claro da Mensagem do Cristo, mostrando-nos que ninguém está perdido, como ninguém é definitivamente irrecuperável.

E assim, compreendemos bem porque Allan Kardec afirmou que “a força do Espiritismo está em sua filosofia.”



Fonte: revista “A Reencarnação”, nº 401 - ano L - outubro de 1984 - órgão de divulgação da Federação Espírita do Rio Grande do Sul.


Deolindo Amorim nasceu na Bahia em 23 de janeiro de 1906 e desencarnou no Rio de Janeiro, em 24 de abril de 1984. É considerado, ao lado de Carlos Imbassahy e Herculano Pires, um dos maiores pensadores espíritas do Brasil. Jornalista, sociólogo, escritor espírita de estilo professoral, extremamente didático e elegante, Deolindo foi um dos maiores divulgadores do Espiritismo como cultura e voltado para a análise de questões da atualidade. Fundou o Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB), foi um dos idealizadores da Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas (Abrajee) e graças ao seu empenho, em conjunto com a Liga Espírita do Brasil, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1949, o II Congresso Espírita Pan-Americano.


Obras: Espiritismo e Criminologia; O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas; Africanismo e Espiritismo; O Espiritismo e os Problemas Humanos; Ideias e Reminiscências Espíritas; Allan Kardec, o Homem e o Meio, dentre outras.

domingo, 23 de setembro de 2012

Deus Não Mudou

Por Jaci Regis

 
Fomos convencidos de que um Deus humano, sentado num trono no céu governava tudo. O céu, dentro do sistema geocêntrico, ficava encima e o inferno, embaixo. Mas, embora não exista nem encima nem embaixo, a ideia permanece nas nossas estruturas mentais arcaicas.
 

Recentemente, a doença e a morte do governador Mário Cova mobilizaram a população em oração. Padres, pastores, rabinos, umbandistas, espíritas, rogaram ao Todo Poderoso pela saúde e pela vida do homem que governava o Estado de São Paulo.


A televisão mostrou milhares de crianças, mulheres e homens arrebatados à morte e à miséria em Moçambique, devido às chuvas que provocaram enchentes arrasadoras, aumentando a miséria daquele país africano, envolto, como os demais, em nebulosos processos de maturação, disputas tribais e de poder.


Lembro-me bem da amargura de um amigo que, endurecido e revoltado, em vão implorara a Deus que salvasse sua filha. O Governador morreu, os moçambicanos estão na pior e a filha do amigo partiu. O silêncio dos céus foi ensurdecedor.


Essa postura diante de Deus, repetida em vários idiomas e religiões, remete-nos, mitologicamente, ao homem primitivo, que se postava temeroso e trêmulo perante o trovão ou diante das lavas dos vulcões, tomados como manifestação da ira divina. Desde então, acostumou-se a fazer oferendas ao Todo Poderoso, para aplacar suas iras.


Poucos são os que neste mundo não creem na existência de Deus. Cada povo, cada época, cada instante da evolução pessoal e coletiva, enfim, na marcha das civilizações, em permanente trânsito para as mutações constantes, defrontou-se com a questão da divindade.


Os judeus, pastores primitivos, definiram, afinal, um deus único, invisível. Foi esse deus vulcânico, incompetente, mas Todo-Poderoso, que nos foi ensinado, conforme o cristianismo, e que definiu o fluxo das concepções vitais, a partir do feito deslumbrante de Moisés no Monte Sinai.


Consolidado na cultura do Império Romano, o cristianismo, atendendo ao impositivo mitológico, transformou Jesus de Nazaré na versão visível de Deus, na confusão da Santíssima Trindade, além de fazê-lo ocupar o lugar do Cristo, no mito judaico do Messias.


Afinal, com exceção dos judeus, todos os povos materializaram, fizeram formas expressas de seus deuses para prestar-lhes culto. Os egípcios viam seus deuses em formas semi-humanas. Os gregos humanizaram de tal forma o Olimpo, onde Zeus reinava, que criaram toda uma linguagem e toda uma mitologia que está presente na cultura ocidental. Maomé, na linha do cristianismo, também tornou Alá invisível.


O DEUS BÍBLICO


Os tempos mudam, mas nossa postura diante da divindade permanece estanque. Continuamos, no fundo, apegados aos padrões que a bíblia judaica nos trouxe, na tumultuada relação entre Javé, o deus de Abraão e o povo hebreu. Toda a concepção judaica de Deus está baseada no seu poder discricionário. Deus, criador imperfeito, sempre revisando sua obra e maldizendo o dia em que criou sua criatura.


Jesus de Nazaré usou outros termos referindo-se a Deus, chamando-o de “pai” e dizendo que “ele” amava as criaturas e era tão zeloso com elas que não lhe caía um só cabelo sem que “ele” soubesse...


Se antes Deus era temido, odiado e suportado sem alternativas, acendeu-se uma luz, relaxou-se o pensamento. Não estamos sós, Ele vela por nós... Na verdade, essas modificações aumentaram ainda mais o conflito.


O Nazareno, segundo o evangelho, afirmou que Deus amou tanto o mundo que enviou o seu filho primogênito. A expressão, como se vê é falsa. Em primeiro lugar, no nosso modo de entender, não há “filho primogênito”, concepção só cabível no horizonte restrito da Terra como o universo e o povo judeu como o escolhido.


Além disso, está subentendido que esse amor de Deus representava uma espécie de relaxamento da ira divina em relação à criatura. É o que depreendemos dessa outra afirmativa evangélica: “... Ora sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai Celestial....” Ou seja, a misericórdia divina é uma exceção dada pelo seu “coração” bondoso aos seus filhos, por ele criados, mas quase sempre desviados.


O deus de Jesus é, portanto, diferente do deus Jeová. Este teve ímpetos de acabar com a raça de víboras que somos todos nós. Aliás, tentou liquidar a humanidade com o dilúvio, segundo o relato bíblico. Mas, também até aí falhou.


Todavia, como foi dito que Deus ama, protege, providencia, cuida e é pai, nada mais natural que seus filhos que criou pela sua exclusiva vontade, a ele se dirijam pedindo providências particulares sobre doença, morte, o futuro e outros detalhes do dia-a-dia. Então, por que esse silêncio ensurdecedor quando a maioria esmagadora pede, suplica e não é atendida?


Para justificar esse silêncio, os sistemas religiosos afirmam que Deus bem que poderia atender, mas não faz porque as pessoas não merecem. A dor, o sofrimento, são remédios para a doença endêmica da maldade que domina os corações humanos.


A criatura desde o início pecou, criou a culpa, fez mau uso de seus instrumentos de vida e, por isso, Deus teve que castigá-la. E por todas as gerações. O homem comum é mau, não obedece a Deus.


A Doutrina Kardecista tenta avançar um pouco nesse espinhoso caminho.


Desenhou todo um esquema da atuação divina, mostrando um delineamento de progresso e evolução, do qual a pessoa é responsável por si, num tempo sem limites, na busca da relativa perfeição. A Providência Divina apenas propicia meios para que esse processo se realize, através, por exemplo, da encarnação/reencarnação, como instrumento de apreensão pela experiência de fatores externos e internos, basicamente centrados no relacionamento com o outro.


O sistema kardecista é racionalista. Tenta enquadrar a ação divina e mesmo o progresso espiritual dentro de critérios racionais. Entretanto, não é fácil desestruturar a mente, trabalhada por milênios de entendimento, conceituação e pressão cultural.


Milênios se passaram e nós, os Espíritos em processo de auto reconhecimento e crescimento espiritual, fomos ensinados a ver a divindade como a um poder invisível, senhor da vida e morte, de difícil comunicação, localizado em algum lugar inacessível, cheio de intermediários que falam, discursam e determinam em seu nome.


Qualquer um olhando as estrelas pensa que lá encima fica Deus. O que levou o astronauta russo Gagarin a dizer que não tinha encontrado Deus, mostrando que até os ateus pensavam no céu lá encima.


As igrejas sempre se mostraram arrogantes, criaram seus líderes como autênticos deuses. O papa católico é visto por milhões como representante desse deus, embora tenha sido eleito pelos demais cardeais. O aiatolá Khomeini criou um estado teocrático no Irã e agora o Taliban, no Afeganistão, pretende impor uma lei marcial-religiosa que cerceia a vida em nome de Deus.


Essa visão específica que criou Deus à semelhança do homem e vice-versa, criador de tudo, onipresente e onisciente, se tornou sufocante e deu um sentido inquietador ao coração humano.


Por isso mesmo a Doutrina Kardecista não pode livrar-se totalmente do Deus bíblico e cristão. Kardec tentou analisar a divindade dentro de padrões racionais. Mas, a razão humana é incapaz de fazer essa operação lógica e, além disso, o universo, a divindade, ou o que seja, não é apenas racional, mas afetivo.


DEUS É INDIFERENTE


Desde o momento que o mundo se livrou da tutela da Igreja que coagia o Espírito, filósofos, políticos, cientistas, alguns sacerdotes e teólogos, começaram a duvidar da forma como o deus Jeová se transplantou para o cristianismo, não obstante as modificações introduzidas por Jesus de Nazaré.


O Espiritismo apresenta uma interessante visão do processo evolutivo, mas na prática, os espíritas de modo geral, absorveram o “modus operandi” cristão e transformaram a reencarnação em pena de talião e a Justiça divina em contabilidade de erros e acertos; e a dor, o sofrimento, como moedas de pagamento dos débitos das pessoas e das coletividades.


A visão estática da vida prejulgou que toda verdade tinha sido revelada. Sem instrumentos e no nível de civilização agrária, as Igrejas acreditaram que tudo estava descrito, determinado.


O imenso vazio entre as esperanças e a realidade, as contradições entre o discurso moral e a realidade espiritual, eram “coisas de Deus”, que convinha não mexer, nem muito menos penetrar. O mistério era a chave mestra desse domínio total sobre as mentes.


Por exemplo, Ptolomeu era um astrônomo e, entretanto, seu sistema afirmava que a Terra era parada e centro do universo. Ele partiu da observação visual, pela qual, de fato, a Terra parece parada. Estamos sentados e não sentimos o globo rodar. Andamos e não percebemos o girar do planeta sobre si mesmo e, muito menos, em direção ao sol. Por isso ele concebeu seu sistema de acordo com sua visão e de suas observações práticas.


Estabelecida essa “verdade final” pela autoridade religiosa, guardiã da palavra de Deus, quem se atreveu a contraria-la foi submetido ao castigo, à humilhação e considerado herege. Entretanto, a Terra não está parada, gira em torno de si mesma, caminha para o sol e é apenas um pequeno planeta num universo de tamanho inconcebível pela mente humana. Portanto, é preciso compreender que a imagem e a atividade de Deus foram concebidas dentro de uma estrutura que não mais pode subsistir.


A incompreensão dessas mudanças conceituais, essa resistência às transições permanentes do processo evolutivo provocam atitudes que, guardadas as devidas proporções, é semelhante à da Igreja em condenar Galileu Galilei.


Segundo os conceitos difundidos pelas religiões (inclusive a espírita-cristã, roustainguista, chiquista e emmanuelina), a divindade é sensível à dor das pessoas e das coletividades. Entretanto, no dia-a-dia, a divindade é indiferente à dor das pessoas e dos povos.


Deus, certamente, não mudou. O Universo, a vida, apesar das descobertas, avanços e tecnologias são, basicamente, os mesmos. Aparentemente, a divindade é indiferente à dor, ao sofrimento. Isso decorre das posições estruturais desenvolvidas através dos tempos. Queremos um “pai” que nos dê colo, ansiamos por um ente superior que nos ampare, nos livre do mal e que nos ame.


Nós não sabemos nada da natureza desse “pai”. Pensamos nele como um homem, um Espírito ou que seja, um ser isolado, colocado em algum lugar, dando ordens, providenciando coisas.


Reflito na necessidade de mudarmos nossa estrutura mental, para nos adequarmos à nova visão da vida, mistificada, fraudada por ignorância e pelos sistemas religiosos de todos os tempos.


Não digo que “Deus não se importa”, nem que ele esteja à parte da criação. Existe um fio condutor na história, mas não da forma como gostaríamos. A identificação da divindade com cada um e com cada oportunidade parece definida por processos além de nosso entendimento racional.


Os cristãos autênticos criaram a escapatória da felicidade além-túmulo num céu estático, para premiar os bons e um inferno para punir os maus. Cada um que se esforce em passar pela vida terrena, sofrendo seus males, até alcançar a morte, que seria a aspiração suprema para os bons, pois só ela seria a porta da paz eterna, mas certamente nada desejada pelos maiores candidatos ao sofrimento sem fim.


Escrevendo essas coisas me sinto contando uma história da carochinha. Mas, os espíritas-cristão não ficam atrás. Estão absolutamente convencidos da inferioridade do ser humano e o culpam por não ter, nesses últimos dois mil anos, se tornado bom O sofrimento não é propriamente festejado, mas de certa forma exaltado, como uma espécie de sadomasoquismo moral, para purgar erros, pagar dívidas e aspirar a uma promoção além-túmulo ou na próxima vida. Também aí, tudo me parece extremamente sem base...


A CIÊNCIA E DEUS


A ciência avança na descoberta de elementos fundamentais da vida orgânica, dos sistemas celestes, na constituição genética e até mental das pessoas. Muitos ficam assustados porque, na imaginação da maioria, ela estaria ocupando o lugar que antes era reservado a Deus. Mas a ciência não cria, descobre. Ela desvenda o que existe e penetra em campos que eram, antigamente, exclusivos da divindade.


A ciência segue sem se importar com as crenças. Embora muitos cientistas se digam propensos a aceitar um poder espiritual, muitos deles pretendem desconhecer toda a história, querem reescrever a criação, desejam ter o poder de mudar, modificar e reconstruir as estruturas orgânico-mentais.


A subversão dos antigos conceitos sobre a criação levou a mudanças profundas no modelo moral da sociedade. A criatura humana, sempre vilipendiada pelas Igrejas, inclusive a espírita, quer ter seu direito de opinar sobre si mesma. Entra em conflito com padrões definidos como divinos, mas estabelecidos pelas igrejas, que afirmam que a vida pertence a Deus e o homem não tem poder sobre seu destino, traçado fora dele...


Amor, sexo, casamento, divórcio, aborto, eutanásia deixaram de ser zonas proibidas ou divinas. É o fruto do livre-arbítrio, ainda que leve, a princípio, à banalização que é a consequência primeira do rompimento da coação mental, social e religiosa.


No princípio a Terra era o centro. Depois o sol, e agora, não existe o centro do universo, mas uma multidão de galáxias se expandindo no Cosmo. Todavia, multidões e igrejas, inclusive a espírita, tentam manter as mesmas posições antiquadas e arcaicas, como se nada houvesse mudado. Não conseguem intervir para orientar. Recolhem-se na condenação ou no discurso repressor. Mas, parece que não há volta.


A expressão “coisas de Deus” confirma a manutenção de estruturas mentais arcaicas, separando o divino do profano, uma forma de se manter a ignorância. Na altura dos acontecimentos, qualquer profecia ou futurologia sobre como as próximas décadas serão é especulação sem sentido. O que tem que ser será.


Allan Kardec afirmou que Deus não faz milagres, porque isso seria derrogar a própria Lei que ele criou. Portanto, a impassividade e o silêncio divinos podem ser apenas formas que não conseguimos compreender dos mecanismos operacionais da Lei. Ou, para que saibamos que temos de resolver nossos problemas. Que a solidariedade é o instrumento de recíproco auxílio que permitirá a vida de relação; e haverá um limite para que a banalização desencadeie a reação para uma posição do meio, sem volta ao passado, por ser impossível e sem arrogância, que é destruída pela desestruturação das pessoas.


A PRESENÇA DE DEUS


Embora nos momentos de dor, sofrimento e angústia, a criatura possa se sentir abandonada por Deus, quando não é ouvida, se percebermos com serenidade veremos que, apesar desse silêncio, persiste uma ordem, uma ordenação no encaminhar das coisas, no decorrer dos tempos.


É como se fosse um grande quebra-cabeça, cujas peças vão aos poucos se encaixando, embora seja impossível determinar, não apenas a extensão, mas a profundidade desse quebra-cabeça.


Nessa altura, não podemos localizar um Deus-homem em um lugar específico do Universo. Não temos nem imagem, nem conhecimento da natureza da divindade. Mas, certamente, podemos compreender, ainda que limitadamente, que a imagem, a concepção e a forma como Deus foi mostrado, pelo menos no cristianismo, não pode ser mais mantida.


Existe uma Lei que abrange o universo, na qual todos estamos inseridos. Essa sensação de solidão decorre da inquietação sobre a morte e o desejo de persistência da maioria. Existem o mal e o bem, não como polos excludentes, mas como condições mutáveis em direção à plena satisfação pessoal, que a sabedoria divina condiciona ao harmonioso relacionamento com os outros.


O universo é baseado na solidariedade, nas leis de atração nos conjuntos estelares e nos conjuntos humanos. Pertencemos a nós mesmos, mas precisamos pertencer ao conjunto, nos inserir na relação afetiva com os outros.


Ninguém quer sofrer e é natural que recorra a um poder que lhe ensinaram ser arbitrário, que ora cede, ora endurece, que tem ira e castiga. Na verdade, muitas pessoas se julgam injustiçadas porque acreditam que não mereciam o sofrimento e as perdas que têm. Reclamam da Justiça Divina dada como sábia e misericordiosa, mas que, parece, muitas vezes premia o mau e castiga o justo.


As coisas, os problemas, enfim, os conflitos e contradições da vida acontecem não porque estão delineados em determinismos divinos, no sentido da alienação da pessoa, sob o império do destino, maktub ou karma. Mas porque decorrem dos mecanismos das leis ambientais e dos complexos processos mentais, nos quais o Espírito elabora o mapa de sua vida, a partir de como se posiciona no mundo e estrutura seu caráter.


As pessoas pedem a Deus que modifique o diagnóstico natural. Quase sempre não são ouvidas Não há uma presença, digamos, “pessoal” da divindade, mas tudo gira em torno de processo sincrônicos, atemporais, mostrando uma direção. Ainda assim, fica sem resposta a razão da vida.


Fonte: Abertura - Jornal de Cultura Espírita, abril de 2001 – Licespe, Santos-SP.



Jaci Regis (1932-2010), psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”, “Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.

sábado, 15 de setembro de 2012

O CÉTICO

Por Maria das Graças Cabral
 
 
Quando Kardec organizou a obra “O Que é o Espiritismo”, travou um diálogo com alguém que se colocava na condição de “cético”, ou seja, aquele indivíduo eivado de dúvidas que não acreditava em absoluto nos fenômenos espíritas. Observe-se que as questões por ele levantadas percorreram os séculos, e ainda persistem ecoando na mente de espíritos encarnados e desencarnados, já em meados do século XXI! Daí, oportuno acompanhar o desenvolvimento de alguns aspectos de seu pensamento, em razão da pertinência e atualidade.
 
 
Inicialmente, uma das questões suscitadas pelo incrédulo, referia-se ao vocábulo espírita e espiritismo, criado por Allan Kardec em substituição a espiritualista e espiritualismo, que seria “o oposto do materialismo”, segundo suas palavras na Introdução de O Livro dos Espíritos.
 
 
O Mestre esclarece que como nem todo o espiritualista crê nos Espíritos, nem na realidade de suas manifestações, a utilização do vocábulo suscitaria uma confusão por parte dos grupos de entendimentos diversos. Portanto, evitando a anfibologia adotou a palavra espiritismo para expressar as ideias codificadas na Doutrina dos Espíritos, e espíritas ou espiritistas aos adeptos do Espiritismo. Assevera o Codificador que “todo espírita é necessariamente, espiritualista, mas levará ainda muito tempo até que todos os espiritualistas se tornem espíritas.” (2001: p. 25).
 
 
Só que a anfibologia temida por Kardec, tomou conta dos vocábulos espiritismo e espírita, posto que, se vivencia hodiernamente uma verdadeira miscelânea de filosofias religiosas que se auto intitulam espiritas. Além do que é “moda” se dizer espírita, é “vendável”, psicografar livros espíritas, “elevam os índices de audiência” novelas espíritas, “lotam” cinemas e teatros filmes e peças espíritas. Ou seja, a palavra “espírita” tornou-se uma marca atraente e rentável e a anfibologia tão combatida pelo codificador, se consolidou.
 
 
Mas voltemos às argumentações do cético, quando ressalta que sendo o Espiritismo considerado uma ciência fundada em fatos positivos, não deveria haver dissidência ou diversidade de crenças entre seus adeptos, como estava ocorrendo na Europa e América.
 
 
A esse respeito, Kardec rebate observando que qualquer ciência no seu aparecimento, dá ensejo a dissidências até que seus princípios sejam definitivamente estabelecidos. Acrescenta que o descobrimento de cada doutrina ocasiona um choque entre os que desejam o progresso e os que teimam em permanecer estacionários.
 
 
Mais uma vez nos deparamos com a conveniência e efetividade do que preconiza o Mestre, quando vivenciamos nos albores do século XXI, as mais diversas dissensões no seio do movimento espírita, graças a um grande número de adeptos, que teimam em manter-se arraigados à idolatria e ao ritualismo religioso, temendo e ignorando a emancipação proposta pela Doutrina Espírita.
 
 
Daí, o interlocutor investe nas “fraudes dos fenômenos espíritas”, tão comuns à época de Kardec, como na atualidade. Em resposta à argumentação proposta, o Mestre indaga: - “Porque se pode imitar uma coisa, devemos acreditar que ela não exista?” Ou seja, se existem médiuns embusteiros, significa que todas as manifestações espíritas são falsificações? (2001: p. 28)
 
 
Aliás, hodiernamente, diante das frequentes notícias de médiuns fraudadores, observa-se um ceticismo crescente nas próprias hostes espíritas. Na realidade vivenciamos os dois extremos. De um lado companheiros de uma credulidade infantil, e de outro lado companheiros de um ceticismo exacerbado. Ou seja, para uns tudo o que provier de um médium e/ou espírito é verdadeiro, e para outros a incredulidade está se sobrepondo ao próprio fato mediúnico.
 
 
E então aonde devemos chegar? Diante da real possibilidade de fraude, que o espírita estude séria e aprofundadamente a parte experimental da doutrina espírita, objetivando obter conhecimento para avaliar e identificar a burla, como reiteradamente preconizava o Codificador.
 
 
Ainda a esse respeito, faz-se por oportuno observar que a mediunidade envolve um processo de alta complexidade, posto que, são individualidades em “planos” diversos que se comunicam através do pensamento e compatibilidade de fluidos. Não obstante, alguém abre mão por algum tempo de sua própria personalidade, para que o outro se manifeste, se mostre, se faça compreender.
 
 
É fato que vários elementos, como p. ex. questões espirituais, psicológicas, ideológicas, intelectuais, morais, dentre outras, afetarão na qualidade da manifestação que nem sempre será fiel ao pensamento e/ou objetivos do comunicante - podendo ser um entendimento equivocado, em razão da própria ignorância do espírito, ou de suas intenções íntimas de mistificar. Como também, poderá haver a dificuldade de alcance e compreensão por parte do médium.
 
 
Diante do exposto retorno a Kardec, quando assevera que não é pelo fato de haver fraudes, que o indivíduo deixa de ser médium. Vale lembrar Eusápia Paladino, que mesmo com fraudes comprovadas, Kardec não deixou de considerá-la uma grande médium.
 
 
Outra questão suscitada pelo opositor incrédulo se referia - na sua concepção - que o espiritismo estava buscando “ressuscitar” as “crenças sobrenaturais.” Afirmava o interlocutor de Kardec, que em um mundo positivista, não haveria mais espaço para superstições e crendices advindas da ignorância popular.
 
 
Oportuno observar que tal argumento se faz muito comumente, quando as pessoas atribuem o “fantasmagórico” e as mais variadas superstições à condição de sobrenatural. Objetivando o esclarecimento da temática aproprio-me das palavras do codificador quando assevera:
 
“Sobrenatural, é o que está fora dos limites regidos pelas leis da natureza. O positivismo só admite estas - mais nada. Conhece-as, porém, todas? Em todos os tempos, os fenômenos cuja causa era desconhecida foram considerados sobrenaturais. Cada nova lei descoberta pela ciência veio dilatar os limites anteriores. O Espiritismo vem revelar uma nova. A comunicação com o espírito de um morto vem revelar uma nova. A comunicação com o espírito de um morto repousa numa lei tão natural quanto as da eletricidade, o que permite que dois indivíduos, separados por quinhentas léguas, estabeleçam contato. O mesmo dá-se com os outros fenômenos espíritas.” (2001: p. 32).
 
 
Finalmente, reporto-me a outra questão levantada pelo nosso companheiro cético, em razão de ser um entendimento defendido com veemência por parte dos que duvidam ou não acreditam na fenomenologia espírita.
 
 
Assevera o interlocutor de Kardec que “os fenômenos provocados são, especialmente, os mais criticados.” Acrescenta, que caso não houvesse charlatanismo e admitindo-se uma completa honestidade, haveria a possibilidade dos médiuns serem vítimas de “alucinação” - tese esta frequentemente defendida pelos que não dão crédito à mediunidade. Ao que o Codificador contrapõe, arguindo que caso o médium por efeito da imaginação acreditasse ver o que não existe, admitir-se-ia que toda a sociedade seria vítima da mesma miragem, e que isso se reproduziria em toda parte e em todos os países. Ou seja, a “alucinação” seria mais prodigiosa que o fato em si.
 
 
Adiante o Mestre comenta que os contraditores “buscam coisas cem vezes mais extraordinárias e difíceis de admitirem (o padre Quevedo que o diga!) do que as que combatem como inadmissíveis.” (2001: p. 38/39).
 
 
Portanto, pode-se observar que o interlocutor incrédulo levantou questões que ainda reverberam nos céticos do nosso tempo, ficando para todos nós a grande lição deixada por Allan Kardec, quando assevera que “o Espiritismo prende-se a todos os ramos da Filosofia, da Metafísica, da Psicologia e Moral, sendo um campo imenso que não podemos percorrer em poucas horas.” Ou seja, a Doutrina dos Espíritos exige do espírita estudo profundo e constante para que se possa esclarecer e desmistificar os inúmeros equívocos disseminados por críticos, céticos e religiosos. Como também pelos próprios espiritistas, que paulatinamente distorcem e minam os princípios doutrinários da codificação, transformando o espiritismo numa seita mística e descaracterizada.
 
 
 
 
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
 
KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Editora LAKE. SP/SP. 26ª edição. 2001.