domingo, 18 de novembro de 2012

Espíritos de Crianças na Erraticidade


Por Maria das Graças Cabral

 
O tema do presente artigo adveio do questionamento feito por um leitor do blog Um Olhar Espírita, quando indagou se seria possível a existência de crianças na erraticidade, posto que, no grupo espírita que frequenta muito comumente elas se apresentam nas reuniões mediúnicas desenhando flores.

Para alcançarmos o entendimento do assunto em pauta, precisamos pontuar e analisar alguns aspectos propostos em O Livro dos Espíritos. Inicialmente trataremos de “períspirito”. Asseveram os Mestres da Espiritualidade, que o Espírito é envolvido por uma substância vaporosa, denominada por Kardec de “períspirito”, que é retirado do “fluido universal de cada globo”.

Pode-se atribuir ao períspirito duas finalidades. Lembrando que ainda estamos longe de conhecer todos os seus atributos. Dizem-nos os Espíritos da Codificação, que na condição de encarnado, ele serve de liame entre o Espírito e o corpo material.

Já para o desencarnado, o períspirito funciona como o envoltório semimaterial, que toma a forma ao “arbítrio” do Espírito. Portanto, afirmam os Mestres Espirituais que é através do períspirito que aquele “aparece algumas vezes, seja nos sonhos, seja no estado de vigília, podendo tomar uma forma visível e mesmo palpável”. (O Livro dos Espíritos, questão 95)

Importante tais elucidações, para clarificar que o Espírito se apresentará tomando a forma a seu alvedrio, objetivando ser reconhecido por aqueles que o conheceram sob tal roupagem, ou para atender outras questões de seu interesse. Entretanto, comumente será visto sob a forma e identidade de sua última encarnação.

Senão vejamos o questionamento feito por Kardec a respeito: - “Como a alma constata a sua individualidade, se não tem mais o corpo material”. Respondem os Espíritos que através do períspirito representará a aparência da sua última encarnação. (O Livro dos Espíritos, pergunta 150-a) (grifos nosso)

No que tange a volta ao mundo espiritual, oportuno ressaltar que a consciência de si mesmo e de sua condição espiritual não se faz de pronto. Daí, grande parte dos Espíritos vivenciam o chamado “estado de perturbação”. Asseveram os Espíritos da Codificação, que tal estado varia de acordo com o grau evolutivo do desencarnado. “Aquele que já está depurado se reconhece quase imediatamente, porque se desprendeu da matéria durante a vida corpórea enquanto o homem carnal, cuja consciência não é pura, conserva por muito tempo mais a impressão da matéria”. (O Livro dos Espíritos, p.164)

Pode-se inferir de tal assertiva, que as pessoas mais espiritualizadas, esclarecidas, moralizadas, se desvincularão mais rapidamente do corpo físico e das questões próprias da vida material, tomando consciência de si mesmas, e da realidade espiritual que as envolve.

Em contrapartida, a grande parte dos que vivem às voltas apenas com as questões próprias da vida material, levará um tempo considerável para se libertar das sensações e impressões do corpo físico, como das questões cotidianas que dizem respeito ao mundo dos encarnados.

Ao tratar do “retorno à vida espiritual”, Kardec indaga na questão 149 de O Livro dos Espíritos, em que se transforma a alma no instante da morte. Respondem os Espíritos Superiores que “volta a ser Espírito, ou seja, retorna ao mundo dos Espíritos que ela havia deixado temporariamente”. Argui então o Codificador na questão 150 da referida obra, se “a alma conserva a sua individualidade após a morte”, ao que os Mestres respondem que o Espírito não a perde jamais.

Portanto, pelo desenvolver das ideias, fica claro que é através do períspirito que o Espírito tomará a forma que lhe convém, buscando retratar a sua individualidade. Entretanto, a consciência de si mesmo e de sua condição de desencarnado vai depender do tempo de duração do seu estado de perturbação, que por sua vez dependerá de uma maior ou menor ligação com a vida material. Esse é um preceito geral aplicável a todos os Espíritos que desencarnam no planeta Terra.

Depois da regra geral apresentada, vamos adequá-la aos indivíduos que desencarnam na infância. A esse respeito, vale ressaltar que tais crianças poderão ser Espíritos com muito mais experiência do que os adultos que ficaram no plano físico.

Aliás, asseveram os Mestres da Espiritualidade que tal evento é bastante comum, e que “a duração da vida da criança pode ser, para o seu Espírito, o complemento de uma vida interrompida antes do tempo devido, e sua morte é frequentemente uma prova ou uma expiação para os pais”. (O Livro dos Espíritos, perguntas 197/199)

Faz-se por oportuno observar que o Espírito que desencarna criança, não é um “Espírito criança”. Já tem uma longa bagagem de experiências a ponto de já encarnar em um corpo de grande complexidade, que é o caso do corpo humano. Portanto, como dito anteriormente, pode até ser um Espírito muito mais experiente e evoluído do que os pais.

Adiante questiona Kardec em que se transforma o Espírito de uma criança morta em tenra idade. Aliás, particularmente nos países subdesenvolvidos, é grande número de crianças que vivem poucas horas, dias, meses ou alguns anos, vindo precocemente a desencarnar pelas mais diversas causas. Ao que respondem os Espíritos: - “Recomeçar uma nova existência”. Ou seja, serão preparados para uma nova encarnação. (O Livro dos Espíritos, pergunta 199-a)

Por fim, o Codificador indaga: - “Com a morte da criança o Espírito retoma imediatamente o seu vigor primitivo”? Respondem os Mestres Espirituais: – “Assim deve ser, pois que está desembaraçado do seu envoltório carnal; entretanto, ele não retorna a sua lucidez primitiva enquanto a separação não estiver completa, ou seja, enquanto não desaparecer toda a ligação entre o Espírito e o corpo”. (O Livro dos Espíritos, pergunta 381) (grifos nosso)

Observa-se, portanto, que a forma infantil de se apresentar, se deve ao estado de perturbação. Ou seja, é a forte ligação com o corpo material, que não permite ao Espírito identificar-se no “vigor primitivo” como dizia Kardec.   

Diante do exposto, pode-se concluir que passado o estado de perturbação, onde o Espírito tomará consciência de si mesmo e de sua condição espiritual, não haverá porque se fazer representar tomando a forma infantil.

Não obstante, vale pontuar algumas hipóteses. Um Espírito evoluído que passou por um breve período de perturbação ao desencarnar, poderá tomar a forma de criança para confortar e ser reconhecido pelos pais, familiares ou amigos encarnados que sofrem a saudade de sua partida precoce.

Muito comumente, pais que perderam filhos a mais de vinte, trinta anos, relatam que viram, sonharam, falaram com suas crianças que se mostravam com a mesma aparência que tinham ao desencarnar. Nesse caso, pode-se entender que tais Espíritos, caso não mais estejam em estado de perturbação, procurassem retratar a forma infantil para serem reconhecidos por genitores e/ou familiares.

Mas, e as crianças que comparecem às reuniões mediúnicas espíritas, ou são vistas transitando por casas, ruas, hospitais, templos, etc.? Já sabemos a resposta. São Espíritos em estado de perturbação, ainda fortemente ligados ao corpo material, sem consciência de si e de sua condição de desencarnado.

Não obstante, pode-se considerar uma nova hipótese. Somos sabedores que em razão da plasticidade do períspirito, e da capacidade que tem o Espírito de moldá-lo ao seu arbítrio, Espíritos inferiores, não mais em estado de perturbação, poderão apresentar-se como crianças, objetivando outros interesses. Por que não? É outra possibilidade a se aventar.

E então o que fazer? Orar por todos, conversar mentalmente, e buscar ajudá-los a se perceberem como Espíritos que são. Afinal não existem “Espíritos crianças”, pois o período de infância, adolescência, maturidade e envelhecimento, é uma condição do corpo físico, que obedece a esse processo orgânico de maturação, próprio dos nativos do planeta Terra.

No que concerne ao Espírito, este tem a sua infância espiritual dimensionada pelo grau de inexperiência diante das Leis Universais. A infância espiritual se faz identificar pelo estado de ignorância. Como dizem os Mestres Espirituais todos os Espíritos são criados simples e ignorantes.

Pode-se asseverar que será mediante o processo de evolução moral e intelectual que o Espírito alcançará a maturidade. O corpo físico é apenas um instrumento necessário para o aprendizado no planeta Terra. Morre o corpo infantil, e sobrevive o Espírito imortal e eterno, com toda uma bagagem de aquisições intelectuais e morais, advindas das múltiplas experiências reencarnatórias, e que integram a sua individualidade.

  

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Editora LAKE. São Paulo/SP. 62ª edição. 2001.

 

domingo, 11 de novembro de 2012

Preto Velho, Pomba Gira, Exu, face as Reuniões Mediúnicas Espíritas


Por Maria das Graças Cabral

Andam muito em voga as obras literárias da autoria de cientistas de formação humanista, como antropólogos, sociólogos, pedagogos e historiadores, que se propõem a estudar o Espiritismo, fazendo suas pesquisas sob a ótica própria da sua área de conhecimento. As conclusões obedecem às limitações impostas pelos objetivos pré-determinados pela pesquisa, apresentando algumas incongruências com o pensamento espírita, posto que, seu entendimento é oriundo de um “outro olhar”.

 E foi lendo uma dessas obras intitulada “Espiritismos – Limiares entre a vida e a morte”, que me deparei com a seguinte assertiva feita pela autora Maria Ângela Vilhena, quando trata de “Dinâmicas da Auto Compreensão Espírita no Brasil”, senão vejamos:

(...) “A valorização do conhecimento letrado, da erudição, do refinamento intelectual atua no sentido de no momento presente excluir dos centros kardecistas os que no passado, quando encarnados, não tiveram acesso a esses bens culturais porque foram pobres, negros, índios. Ergue-se assim uma barreira simbólica, um fosso invisível a afastar do kardecismo os brasileiros menos favorecidos economicamente, discriminados pelo sangue e pele, contaminados por tradições religiosas de procedência não europeia. Eis porque, para muitos analistas do movimento espírita kardecista, aqui estariam, ainda que de maneira velada, traços provenientes de preconceitos de classe, cor, religião e cultura que grassam na sociedade brasileira”. (2008: p. 130) (grifo nosso)

Adiante acrescenta em um tópico intitulado TENDÊNCIA INCLUSIVISTA o seguinte:

(...) “Neles não faltam questionamentos à FEB e a certos centros a ela filiados, que não recebem espíritos de pretos velhos, índios, caboclos, mas apenas literatos, pintores, padres, freiras de cútis branca, olhos azuis”. (2008: p. 141) (grifo nosso)

Diante do exposto, farei resumidamente algumas considerações, de acordo com o que está positivado em O Livro dos Espíritos. Asseveram os Mestres espirituais da Codificação, que somos todos Espíritos em evolução e fomos criados simples e ignorantes; que temos o livre-arbítrio para escolher nossos caminhos, daí, alguns avançarem mais rapidamente rumo à perfeição, e outros mais lentamente; que mais cedo ou mais tarde, todos alcançarão a condição de Espírito Perfeito; e que segundo o grau de perfeição se tem Espíritos de diferentes ordens, que vai da Imperfeição à condição de Espírito Puro.

A Doutrina Espírita estabelece que com a morte do corpo material, o Espírito leva para o plano espiritual todas as aquisições intelectuais e morais. Não vira santo, nem gênio, nem demônio. Continua sendo o que é, com seus vícios, virtudes, crenças, dores morais, desequilíbrios, amores e ódios. Que passará um tempo na condição de Espírito errante, estudando o seu passado e procurando o meio de se elevar.

Também nos é dito que o Espírito desencarnado não perde sua individualidade e utiliza-se de um envoltório semimaterial (períspirito) que toma uma forma visível e palpável, e apresenta a aparência da sua última encarnação.

Fica claro que toma esta aparência, pois é assim que se percebe, se identifica, e se faz reconhecer. Portanto, se desencarnou como negro (a) ou oriental, assim se apresentará e se perceberá. Entretanto, se numa próxima encarnação, reencarnar como um (a) mulato (a), ou branco (a), assim se apresentará e se perceberá. Até porque o Espírito não tem cor nem sexo. Apenas utiliza-se do corpo material para o seu desenvolvimento espiritual, e por consequência, seu períspirito, no papel de elo entre a matéria e espírito, e de envoltório do espírito quando desencarnado, mantém a forma do corpo físico que habitou.

Vale ressaltar, que a aparência o identifica e individualiza. Então se questiona: - Será que alguém que encarnou como escravo, índio, mulato, branco, passará a se apresentar “sempre” com essas características mesmo depois de várias outras encarnações? E se insistir em se fazer conhecer e se identificar com essa forma, qual seria seu propósito?

Asseveram os Mestres Espirituais, que pode o Espírito se apresentar e se identificar sob a forma de uma encarnação transata, desde que haja necessidade de se fazer reconhecer por alguém (uns) que o conheceu sob aquela forma e identidade.

No que concerne à identidade dos Espíritos, outro aspecto relevante a ser proposto, diz respeito aos vários Espíritos da Codificação que se apresentam com nomes de grandes personalidades terrenas como Sócrates, Platão, Santo Agostinho, Erasto, etc. Não obstante, tais pessoas foram individualidades que passaram pela Terra traçando uma rica experiência encarnatória, deixando seus nomes eternizados pela grandeza dos feitos realizados.

Dizem os Mestres espirituais, que muito comumente Espíritos de alta elevação se apropriam de nomes conhecidos e respeitados na Terra, para trazerem mensagens esclarecedoras ou revelações, objetivando serem estas mais facilmente acatadas pela humanidade.

Como também muitos outros Espíritos se apresentam com os nomes de suas últimas encarnações, como pessoas comuns que fizeram parte da humanidade terrestre. São os inúmeros “Joãos”, “Marias”, “Alices”, “Elizabetes”, “Fredericos”, etc., que também viveram na Terra, e narram suas histórias eivadas de vitórias, e/ou insucessos, independente de raça, credo ou condição social. E esses relatos estão fartamente presentes nas Obras Fundamentais incluindo as Revistas Espíritas, a título de ensinamento.

Não obstante, no que concerne ao Preto Velho, a Pomba Gira, ao Exu, ao Satanás, a Iemanjá, ao Anjo Gabriel, ao Anjo Ismael, ao Saci Pererê, a Mula sem Cabeça, etc., não passam de figuras mitológicas ou folclóricas. Ou seja, essas individualidades nunca existiram.

Pode-se entender que alguns Espíritos se façam identificar com tais denominações, ou assumindo tais formas (em face da plasticidade do períspirito) tendo como objetivo, despertar respeito, reverência, credibilidade, assustar ou aterrorizar os crédulos.

Afinal, ninguém é “Preto Velho” nem “Pomba Gira”, nem “Satã”, muito menos os Espíritos de alta evolução andam tomando forma de “Anjos” cacheados e com asas, para serem acatados e respeitados pelos encarnados. Tais recursos apenas denotam o nível de ignorância de tais Espíritos, que ainda procuram recorrer a essas formas e identidades para chamar a atenção daqueles que acreditam, e assim alcançarem objetivos frequentemente não muito nobres.

Oportuno pontuar, que as reuniões mediúnicas espíritas, devem ter caráter educativo e esclarecedor tanto para encarnados, como para desencarnados. Observa-se que Kardec exaustivamente apresenta nas obras fundamentais, as reuniões mediúnicas como a parte prática e educativa da Doutrina dos Espíritos, já que esta tem dentre seus fundamentos, a comunicabilidade e interação entre os dois planos da vida.

Vale ressaltar, que todos os diálogos travados numa mediúnica se desenvolvem num clima de respeito e recolhimento, numa busca incessante de aprendizado e esclarecimento por parte dos interlocutores encarnados e desencarnados.

Daí, por exemplo, se um Espírito se apresenta na reunião mediúnica espírita identificando-se como: - “Sou o Saci Pererê”, ou, “sou o Preto Velho”, ou ainda, “sou a Pomba Gira”, obviamente, que se buscará saber quem ele é realmente, para que se possa analisar a sua problemática. Não se deve jamais fomentar a “fantasia” de individualidades que se apresentam como figuras folclóricas e/ou mitológicas.

Portanto, o Espiritismo não exclui o atendimento a Espíritos de negros, índios ou pobres. Muito pelo contrário, acolhe e respeita a todos. Não obstante, sendo uma Doutrina filosófica e moral, não acolhe superstições e crendices. Na realidade, a Doutrina Espírita busca esclarecer e educar o Espírito humano, conduzindo-o para sua emancipação espiritual.

O Espiritismo assevera que ninguém é anjo ou demônio. Somos todos Espíritos, criados simples e ignorantes, em processo evolutivo, e que temporariamente utilizamo-nos de corpos, e vivenciamos a maldade e a dor, por pura ignorância, no sentido de ignorar, de desconhecer, de faltar habilidade para vivenciar a Lei de Amor.

Entretanto, mais cedo ou mais tarde alcançaremos a condição de Espíritos Puros. Seremos Seres Cósmicos livres do processo reencarnatório, expandindo todo o potencial de bondade, de beleza e paz, em favor de todos os seres.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

VILHENA, Maria Ângela. Espiritismos – Limiares entre a vida e a morte. Ed. Paulinas. 1ª edição. São Paulo/SP. 2008.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Ed. LAKE, 62ª edição. São Paulo/SP. 2001.

sábado, 10 de novembro de 2012

O Sacerdote & O Espiritismo


Por Maria das Graças Cabral

Durante todo o trabalho de sistematização da Doutrina dos Espíritos, Allan Kardec, na condição de Codificador, se disponibilizou de forma efetiva a tirar dúvidas e fazer análises do que se escrevia e/ou falava a respeito do Espiritismo. Nunca deixou de dirimir as dúvidas daqueles que de forma sincera buscavam a compreensão da nova doutrina, estimulando o estudo sério e efetivo, e estabelecendo de forma clara os fundamentos e objetivos da mesma.

Nesse sentido travou vários diálogos com pessoas cujos propósitos eram os mais diversos. Desde os simples “curiosos” aos opositores contumazes. Entretanto, buscava primeiramente “captar” o verdadeiro propósito do inquiridor, pois não perdia seu tempo, com discursos improdutivos.

Na obra intitulada “O que É o Espiritismo”, Kardec tem por objetivo apresentar uma “iniciação preliminar” da Doutrina Espírita, através de respostas a “questões fundamentais” que lhe eram lançadas com frequência.

Daí organiza três capítulos sob a forma de diálogos, com três personalidades que se opõem ao Espiritismo. No primeiro capítulo seu inquiridor é um crítico, no segundo um cético e no terceiro um sacerdote católico.

No presente artigo faremos algumas considerações do diálogo desenvolvido com o personagem religioso, na condição de um dos mais contumazes opositores da Doutrina dos Espíritos, por ver nesta, uma ameaça à sua religião e aos seus dogmas.

Inicialmente Kardec antes de se propor a responder aos questionamentos que seriam feitos pelo sacerdote, deixa claro que não é seu propósito “convertê-lo” às ideias espíritas, acrescentando que o inquiridor terá a liberdade de repudiá-las ou aceitá-las, pois “o Espiritismo não cuida de impor-se a ninguém e que não veio forçar convicções”. (2001: p. 71)

Faz-se por oportuno a transcrição de um pequeno trecho, onde Allan Kardec assim se expressa:

“O Espiritismo não se impõe porque, como disse, respeita a liberdade de consciência. Compreende muito bem, por outro lado, que toda fé imposta é superficial e só oferece aparências de fé; nunca é a fé sincera. Expõe seus princípios aos olhos de toda a gente, de modo que possa cada um formar opinião com conhecimento de causa. Os que aceitam, leigos ou sacerdotes, fazem livremente porque o acham racionais. De nenhuma maneira, porém, abrigamos rancor contra os que não são do nosso parecer. Se existe uma luta aberta entre a Igreja e o Espiritismo, não fomos nós que a provocamos. Disso estamos convencidos”. (2001: p 72)

A partir de tais considerações trava-se um longo diálogo, sincero, às vezes ácido, mas muito esclarecedor para os quiserem adentrar ao estudo da Doutrina Espírita. O religioso de início se coloca asseverando que, “assistindo ao advento da nova doutrina” e sendo sabedor que esta traz princípios que “deve condenar, a Igreja tem certamente o direito de discuti-los e os combater”, prevenindo seus fiéis “contra o que considera errôneo”. (2001: p 72)

Kardec prontamente observa que a Igreja não se ateve apenas aos limites da discussão, mas foi além publicando escritos e fazendo sermões levantando a injúria, a calúnia, perseguindo e desfigurando maliciosamente os princípios da Doutrina. Ao que o sacerdote alega que a Igreja não poderia ser responsabilizada por “alguns membros menos educados”. O Codificador contrapõe “lembrando” que as agressões, calúnias e perseguições não partiram apenas dos fiéis, mas também e principalmente, dos “Príncipes da Igreja”.

Não obstante, o que realmente preocupa ao sacerdote é o fato de o Espiritismo não estar em todos os pontos concorde com a religião católica. A esse respeito, Kardec com muita coerência o adverte que todas as demais religiões podem dizer o mesmo, até porque, dentro das próprias religiões existem as divergências.

No que concerne às cisões que ocorrem no seio das religiões, faz-se por oportuno os esclarecimentos feitos pela professora Maria Ângela Vilhena quando assim se expressa:

“(...) a existência no interior das religiões de todo um complexo de crenças e práticas que guardam entre si maior ou menor grau de semelhanças, proximidades e distanciamentos. Às vezes, quando da predominância da diversidade interna, de afastamentos dos fundamentos tidos por alguns como sendo ortodoxos, formam-se grupos representativos de posturas antagônicas e concorrentes. Pode ocorrer que quando as críticas acirradas vão tornando o diálogo cada vez mais áspero e até mesmo impossível, entre seus membros surjam cismas e rupturas. Essa é uma das razões pelas quais, em situações-limite, das disputas aparecem cisões internas, exclusões e desmembramentos em subgrupos”. (2008: p. 13/14)

E acrescenta adiante:

“Pretende-se, assim, demonstrar que o campo religioso é um campo de disputas não apenas entre diferentes religiões, mas também que no interior da mesma religião formam-se dissensões, grupos disputantes, cada qual imbuído da pretensão da correta interpretação dos princípios doutrinários e práticas a eles correlatas”. (2008: p. 13/14)

Portanto, é fato que as discordâncias e dissenções existem entre as religiões constituídas, e muito comumente dentro de suas próprias hostes.  A título de exemplo a referida autora se reporta ao Judaísmo e suas várias vertentes, como ultra ortodoxa, conservadora, liberal, renovada, mística cabalística. O Budismo tibetano, o taoísta, o movimento Soka-Gakai, ou o da Perfeita Liberdade. O próprio Catolicismo também abriga várias tendências, como a Teologia da Libertação, os padres cantores que optam - segundo as palavras de VILHENA - pelo show-missa. E os Protestantes, que tem os que seguem a Igreja Renascer em Cristo, a Universal do Reino de Deus, ou a Pentecostal Brasil para Cristo. (2008: p. 15)

No que tange ao Espiritismo, preceitua a autora, que se encontram referências, “ao Espiritismo kardecista ortodoxo, ao movimento que alia a Umbanda ao Kardecismo, ou ainda ao Espiritismo catolicizado”. (2008: p. 15)

Diante das observações feitas por Kardec, o religioso prossegue seus questionamentos, pontuando como o “cerne da questão”, o fato de o Espiritismo defender certos conceitos combatidos pela Igreja, como a reencarnação, a presença do homem na Terra antes de Adão; nega a eternidade das penas, a existência do demônio, do purgatório e do fogo do inferno. Vale ressaltar também que a Doutrina dos Espíritos, tira a autoridade dos clérigos para perdoar pecados, pois estabelece que cada um é responsável pelos próprios atos, e não serão palavras ou rituais que irão modificar a situação espiritual de ninguém. (2001: p. 79)

Em resposta a tais argumentos, o Codificador assevera que “há muito tempo essas questões vêm sendo discutidas, e não foi o Espiritismo que as trouxe para o terreno dos debates”. E acrescenta que tais problemas fomentam controvérsias na própria teologia. (2001: p. 79)

Não obstante, o Mestre observa que o que mais importa, independentemente da crença, é que os seres humanos se tornem melhores, pois a prática do bem está pautada numa lei superior.

Daí, Kardec de forma clara e objetiva, que faz parte de sua personalidade e de seu discurso, assim se expressa:

“Creia, se lhe agrada, que não temos senão uma existência corporal. Isto não lhe impedirá de nascer aqui ou em outra parte, à sua revelia, se assim tiver que ser”.

“Creia que o mundo inteiro foi feito em seis vezes vinte e quatro horas, se tal for sua opinião. Isso não impedirá que a Terra ostente escritas em suas camadas geológicas, as provas do contrário”.

“Creia, se lhe apraz, que Josué deteve o movimento do Sol. Isso não impedirá que a Terra gire”.

“Creia que há apenas seis mil anos encontra-se o homem na face da Terra. Por isso, os fatos não serão impossibilitados de provar o absurdo da crença”.

“E que dirá o senhor se, um belo dia, quando menos esperar, a inexorável Geologia vier demonstrar, com vestígios incontestáveis, como já provou tantas outras coisas, a anterioridade do homem”?

“Creia na existência do demônio; creia em tudo o que quiser, se a crença nessas coisas puder torná-lo bondoso, humano e caritativo para com seus semelhantes”. (2001: p. 80)

Pode-se visualizar com que propriedade o Codificador estabelece os fundamentos da Doutrina dos Espíritos. Em seguida discorre resumidamente sobre reencarnação, penas eternas, e demônio, objetivando esclarecer seu interlocutor.

Não obstante, vale pontuar outro aspecto considerado pela Igreja Católica como uma afronta à sua dogmática. Trata-se da questão que se refere à comunicabilidade dos Espíritos.

O sacerdote afirma que a Igreja proíbe as comunicações com os Espíritos dos mortos, por serem contrárias à religião, e por estarem “formalmente” condenadas pelo Evangelho e por Moisés, que pronunciou a “pena de morte”, para aqueles que descumprissem tal determinação.

Kardec começa por esclarecer que a proibição de Moisés, era justificada pela necessidade do legislador hebreu fazer seu povo abandonar os costumes egípcios. Na realidade, as evocações eram meios de adivinhações, explorados pelo charlatanismo e pela superstição. Diante de um povo indisciplinado e endurecido, arraigado às práticas e crenças egípcias, estabeleceu a pena de morte em sua legislação, para que pudesse conter a população e alcançar seus objetivos. (2001: p. 84)

E daí contra argumenta que se a proibição de evocar os mortos procede da Divindade, como estabelece a Igreja, a pena de morte contra os deliquentes, seria também por ela ditada. E acrescenta que “se a Lei de Moisés é para a Igreja artigo de fé sobre certo ponto, por que não seria sobre todos? Por que recorrem a ela quando convém e a desprezam quando não convém? Por que não seguir todas as prescrições, entre as quais a circuncisão, que Jesus sofreu e não aboliu”?

Obviamente, há de se compreender que a Lei Mosaica traz nas tábuas do Sinai, os preceitos morais indestrutíveis. E numa segunda parte a legislação civil, que se adequava aos costumes da época, e do povo, como qualquer outra legislação que disciplina as relações sociais.

Não obstante, Kardec salienta que a Igreja não nega a comunicação dos bons Espíritos, tidos como “santos”, nem dos “demônios”, tão ou mais poderosos que aqueles! Observa-se um contra senso nessa proposição, pois se os que estão no “ápice da bondade” ou no “ápice da maldade” podem se manifestar aos encarnados, o que impediria a todos os outros terem a mesma capacidade e/ou oportunidade? Afinal, não estão todos na mesma condição de Espíritos? Por que essa “lei” só atingiria os extremos?...

Na realidade, assevera o Mestre a esse respeito, que as religiões, supondo-se na posse exclusiva da verdade absoluta, identificam como demoníaca toda e qualquer doutrina que não seja exclusivamente ortodoxa, ao seu ponto de vista...

Aliás, o Codificador de forma exaustiva em várias oportunidades afirma que os Espíritos não vêm para derrogar as religiões. Mas para revelar novas leis da natureza. Acrescenta que os religiosos devem observar se seus artigos de fé, seus dogmas, podem anular uma lei natural que é obra de Deus.

Finalizando, nada melhor do que as orientações do Mestre quando se dirigindo ao seu interlocutor, assevera que a “melhor maneira de uma pessoa adquirir conhecimentos sobre o Espiritismo é estudando a teoria”, pois os fatos virão depois naturalmente, e serão compreendidos.

Afinal, é através das obras propostas por Kardec, que vão desde O Livro dos Espíritos, passando pelo O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno, A Gênese, e A Revista Espírita, que segundo o próprio Codificador “é um curso de aplicação, pelos numerosos exemplos que oferece e os desenvolvimentos que encerra, sobre a parte teórica e a parte experimental”, que poderemos compreender “em parte” a grandiosidade e complexidade que envolve o nosso destino de Espíritos imortais, todos sob o comando de uma Lei Maior, da qual temos apenas uma pálida ideia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

VILHENA, Maria Ângela. Espiritismos – Limiares entre a vida e a morte. Ed. Paulinas. 1ª edição. São Paulo/SP. 2008.

KARDEC, Allan. O Que é o Espiritismo. Ed. LAKE. 26ª edição. São Paulo/SP. 2001.

domingo, 4 de novembro de 2012

Os Religiosos Católicos Presentes na Doutrina Espírita


Por Maria das Graças Cabral

 

Muito comumente causa espanto aos neófitos da Doutrina dos Espíritos, encontrar nomes de veneráveis santos católicos, na condição de grandes Mestres da Espiritualidade, que trouxeram os fundamentos do Espiritismo.  

Nos Prolegômenos de O Livro dos Espíritos, além de grandes pensadores da humanidade do quilate de Sócrates e Platão, mencionam-se os nomes de santos da Igreja Católica tais como: São João Evangelista, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, São Luís, dentre outros religiosos que se manifestaram nas obras fundamentais espíritas.

Podemos citar Fénelon, destinado pela família para a carreira eclesiástica. Começou seus estudos no colégio dos Jesuítas em Cahors. Continuou os Estudos junto aos Jesuítas em Paris e manteve contatos com o seminário de Saint-Sulpice. (Fonte: http://www.geae.inf.br/pt/biografias/ - Acessado em 04/11/2012)

Outro religioso católico presente na codificação foi Lamennais, que nasceu em uma família burguesa. Foi um escritor brilhante, tornando-se uma figura influente e controversa na história da Igreja católica francesa. Com 34 anos de idade, Lamennais foi ordenado padre. Na condição de escritor fluente, político e filósofo, esforçou-se para combinar a política liberal com o Catolicismo Romano, após a Revolução Francesa. (Fonte: http://www.geae.inf.br/pt/biografias/ - Acessado em 04/11/2012)

Também sacerdote das hostes católicas foi Lacordaire, nascido em 12 de maio de 1802, numa cidade francesa perto de Dijon, tornou-se vigário da famosa Catedral de Notre-Dame, em Paris. A força da sua oratória atraía milhares de leigos para o culto. Em 1839 entrou para a Ordem Dominicana na França, trabalhando pela sua restauração, desde que a Revolução Francesa a tinha largamente subvertido. (Fonte: http://www.espiritismogi.com.br/biografias/- Acessado em 04/11/2012)

Constata-se nas mensagens de tais espíritos, esparsas nas obras fundamentais, um discurso bem próprio dos clérigos católicos. Veja-se a título de exemplo, um pequeno trecho de Santo Agostinho falando do “mal como remédio” da alma:

 “Vossa terra é por acaso um lugar de alegrias, um paraíso de delícias? A voz do profeta não soa ainda aos vossos ouvidos? Não clamou ele que haveria choro e ranger de dentes para os que nascessem neste vale de dores? Vós que nele viestes viver, esperai, portanto lágrimas ardentes e penas amargas, e quanto mais agudas e profundas forem as vossas dores, voltai os olhos ao céu e bendizei ao Senhor, por vos ter querido provar”!

E adiante acrescenta: “Se, no auge de vossos mais cruéis sofrimentos, cantardes em louvor ao Senhor, o anjo da vossa guarda vos mostrará o símbolo da vossa salvação e o lugar que devereis ocupar um dia”. (O Evangelho Segundo Espiritismo. Capítulo V. item 19) (grifo nosso).


Identifica-se claramente um sacerdote a falar aos fiéis das “penas” acerbas impingidas pelo “Senhor”, aos “pecadores” que vivem nesse “vale de dores”, utilizando-se de um vocabulário próprio do catolicismo, e que ainda se faz presente muito fortemente em seu discurso.

Não obstante, viajando no tempo e aportando no século XX, nos deparamos com os médiuns brasileiros, Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, considerados os ícones do Espiritismo no Brasil e no mundo. E aí, mais uma vez observa-se a presença ostensiva de religiosos católicos à frente da divulgação da Doutrina Espírita.

No caso do conhecido médium Francisco Cândido Xavier, seu famoso mentor asseverava ter sido em sua última encarnação, o padre jesuíta Manoel da Nóbrega, que aos 27 anos, foi ordenado pela Companhia de Jesus (1544), fazendo-se pregador. Viajou por Portugal, Galiza e o resto da Espanha na pregação do Evangelho. Surpreendido com o convite do rei D. João III, embarcou na armada de Tomé de Sousa (1549). Chegaram à Bahia em 29 de março de 1549 e, celebrada a primeira missa, ter-se-ia voltado para seus auxiliares e dito: “Esta terra é nossa empresa.” (http://pt.wikipedia.org/- Acessado em 04/11/2012).

Quanto ao não menos famoso médium e divulgador mundial do Espiritismo, Divaldo Pereira Franco, assevera este, ter como mentora, a freira católica Joanna de Ângelis. Segundo o médium, Joanna “no século I, vivera como Joana de Cusa, uma das maiores colaboradoras da obra de Jesus, inclusive citada no evangelho como uma das mulheres piedosas, tendo sida queimada viva ao lado de seu único filho, juntamente com outros cristãos no Coliseu de Roma”. Em 12/11/1651 nascia no México Sór Juana Inés de La Cruz, tendo sida a maior poetisa da língua hispânica; muito competente em teologia, medicina, direito canônico e astronomia. Foi teatróloga, musicista, pintora e poliglota. Falava e escrevia, fluentemente, seis idiomas.

Em 11/12/1761 nascia em Salvador-Bahia Sóror Joana Angélica de Jesus que posteriormente tornou-se freira. Em 1822, em defesa da honra das jovens do seu Convento, foi assassinada por um soldado português, tornando-se mártir da independência do Brasil. Joanna de Ângelis também vivera no século XIII, de 16/07/1194 à 11/08/1253. Segundo a mentora, ficou conhecida como irmã Clara de Assis, fundadora da ordem feminina Franciscana. Mais tarde, em 15 de agosto de 1255 foi canonizada pelo papa Alexandre IV como Santa Clara de Assis. (Clara de Assis)”. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/ - Acessado em 04/11/2012).

Diante do exposto, no que concerne aos Espíritos que participaram efetivamente na Codificação da Doutrina Espírita, observa-se em suas biografias, que não viviam a experiência religiosa numa condição de reclusos em monastérios. Pelo contrário, todos foram grandes filósofos, e/ou cientistas, que já pensavam e estudavam as questões cruciais da humanidade, envolvendo a moralidade humana, a educação, e os grandes conflitos sociais.

Desenvolviam teorias filosóficas que se adequassem ao catolicismo, formando entendimento religioso a ser acatado e adotado pela Igreja (instituição). Na realidade, objetivavam encontrar um “elo” que justificasse a vida com todas as suas complexas consequencias ao Deus e supremo criador, coadunando-se tais pensamentos com as “verdades” dogmáticas e bíblicas, adotadas pela Igreja Católica Apostólica Romana.

Não obstante, tais personalidades quando do retorno ao mundo espiritual, foram expandindo seus conhecimentos, mudando seus entendimentos, obviamente que orientados pelos grandes “Mestres da Espiritualidade”, e assim se prepararam para a grande empreitada de trazer à humanidade, nos albores do século XIX, as grandes revelações que estavam gravadas em nossos “arquétipos”, apropriando-me do termo junguiano, e que considerávamos sobrenatural ou fantástico.

Vieram provar a existência e imortalidade do Espírito e todas as suas consequências, respondendo ao clássico questionamento humano: - “Quem sou? De onde vim? Prá onde vou?” E dentro de suas respectivas áreas de conhecimento, foram desenvolvendo todo um grandioso trabalho que suplantou muitas das convicções que defendiam em encarnações transatas, na condição de encarnados.

Oportuno ressaltar, que a Doutrina dos Espíritos baseia-se no principio evolutivo para todos os seres da criação. Fica claro que este processo envolve tanto o aspecto intelectual como moral, e não está adstrito às experiências no corpo físico.  A Doutrina é farta em exemplos trazidos pelos testemunhos de Espíritos que se reportam aos seus estudos e observações feitos no mundo espiritual.

A esse respeito em O Livro dos Espíritos, quando trata do Mundo Espírita ou dos Espíritos, Kardec indaga aos Mestres Espirituais “de que maneira se instruem os Espíritos errantes”, e a resposta dada é a seguinte: - “Estudam o seu passado e procuram o meio de se elevarem. Vêem e observam o que se passa nos lugares que percorrem; escutam os discursos dos homens esclarecidos e os conselhos dos Espíritos mais elevados que eles, e isso lhes proporciona idéias que não possuíam”. (O Livro dos Espíritos – pergunta 227)

Daí entende-se porque, os Espíritos católicos avançaram mais rapidamente rumo ao conhecimento Espírita. Observe-se que já acreditavam na vida espiritual, embora com uma visão limitada de céu, purgatório e inferno. Acreditavam nas manifestações dos santos e demônios e nos milagres realizados pelos santos intercessores. Portanto, estavam mais preparados para entender à dinâmica que envolve o mundo material e o mundo espiritual.  

Por outro lado, não se identifica dentre os Espíritos religiosos da Codificação, pastores protestantes. A esse respeito, entende-se que diante de uma maior rigidez interpretativa da bíblia, da não aceitação radical da comunicabilidade dos mortos, onde só aceitam a manifestação do demônio, torna-se muito mais complexa a compreensão e aceitação da Doutrina Espírita.

Na realidade, o protestantismo está mais voltado ao Deus mosaico, e na busca pelo sucesso na vida material. Isto por entenderem, que a morte os levará a um estado de sono profundo até a chegada do Juízo Final. Por conseguinte, não oram pelos mortos nem admitem sua comunicabilidade. Aliás, só trabalham de forma efetiva com o exorcismo - que é a expulsão do demônio - pois segundo suas convicções, este procura seduzir a humanidade tomando a forma de pessoas queridas e veneráveis para conduzí-las ao inferno. Daí se mostrarem menos refratários à compreensão e aceitação dos princípios Espíritas.

Para finalizar far-se-á alguns comentários sobre os mentores religiosos dos médiuns Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, na condição de divulgadores da Doutrina Espírita para o Brasil e o mundo. Observa-se que ao contrário dos Espíritos da codificação que vieram trazer os novos paradigmas para o Espírito humano, os referidos mentores, buscam introduzir aos princípios Espíritas alguns aspectos de suas convicções religiosas católicas.

Fácil compreender, pois o progresso de cada ser humano tem seu rítmo próprio. Portanto, não se daria tão rapidamente as mudanças de “vícios” religiosos arraigados, próprios de espíritos que passaram por várias encarnações vivenciando a dogmática religiosa católica, defendida e abraçada com profunda convicção. Observe-se que para estes não havia conflitos entre seus pensamentos e o que estava posto pela Igreja que serviam e amavam.

É fato que hoje se dizem espíritas e trabalham como divulgadores do espiritismo. Não obstante, sempre que podem, buscam distorcer aquilo que os incomoda na Doutrina Espírita, por entenderem em desacordo com as crenças religiosas que professaram por tantas encarnações e que ainda trazem gravadas em seus Espíritos, como convicções a serem respeitadas.

Em contrapartida, é óbvio que tais Espíritos encontram em seus médiuns um “campo de convicções religiosas” que se coaduna perfeitamente com seus interesses. Daí, a perfeita sintonia que permite sem o menor obstáculo, a divulgação espírita eivada dos rituais e credos iminentemente católicos.

Percebe-se esta forte presença, por exemplo, no “culto do evangelho no lar” - com a jarra de água para fluidificar, o caderno com os nomes dos que deverão receber a ajuda espiritual, a leitura do evangelho e de livros de mensagens de textos bíblicos – nada mais ritualístico e católico.

Portanto, diante das considerações acima expostas, pode-se entender porque o catolicismo ainda se faz tão presente no meio espírita. Porque ainda precisamos casar nas igrejas católicas, batizar nossas crianças, mandar rezar missa de sétimo dia para nossos mortos, levar flores para depositar aos pés das imagens de Nossa Senhora, Bezerra de Menezes, São Francisco de Assis, etc..

Porque ainda fazemos promessas e romarias para os santos. Porque procuramos usar a cor branca e cobrir com toalhas brancas as mesas de reunião mediúnica, como se cobrem os altares das igrejas católicas. Por isso fazemos as filas para receber passes e beber a água fluidificada, como fazíamos as filas para receber a comunhão nos templos católicos.

Efetivamente, são muitos os comportamentos atávicos que ainda estamos longe de nos libertar, por estarem incrustados em nossos Espíritos, em razão das inúmeráveis encarnações abraçando a Igreja Católica como a portadora da verdade inquestionável, a representante de Deus na Terra, e único laço de ligação entre o homem e o Criador.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Doutrina Espírita e o Elemento Humano


Por Deolindo Amorim

A seara espírita é um campo de experiências. Seria ilusão esperar que todos quantos se engajam no trabalho espírita, nesta ou naquela faixa, por mais ardoroso que seja o desejo de servir, já estejam completamente desligados de uns tantos hábitos, contraídos nos ambientes de onde vieram. Não. As tendências religiosas de origem, os cacoetes adquiridos na profissão ou na vida social e os impulsos do próprio temperamento não se modificam de um momento para outro. O fato, portanto, de ingressarmos nas fileiras espíritas, seja pela dor, seja pela reflexão profunda ou por outro motivo, não significa que tenhamos deixado lá fora todas as propensões ou, afinal, toda a bagagem que nos acompanha. Não se diz a toda hora, e é certo, que o meio espírita é uma escola? Escola pressupõe aprendizado e melhoramento.

Como a Doutrina Espírita recebe adesões de pessoas oriundas de todas as classes sociais, assim como de todas as correntes religiosas e de todos os níveis da escala humana, as frentes de trabalho no movimento espírita, quer no campo assistencial, quer no campo doutrinário, mediúnico etc., reúnem elementos muito variados entre si, com temperamentos, concepções e costumes em tudo e por tudo diferentes. É natural, até certo ponto, que haja alguns problemas por falta de entrosamento. Todos, afinal, querem trabalhar e todos são necessários à realização da obra comum. Mas nem todos sempre se identificam nas ideias, nos modos de conduzir as tarefas e assim por diante. Todos — é bom frisar — desejam contribuir com sua parcela de esforço. E todos devem ter oportunidades de prestar serviço.

O problema não está propriamente no fato de haver desigualdades individuais por causa da formação, estrutura psicológica, educação, cultura etc., mas na falta, às vezes, de tato para contornar as dificuldades entre grupos heterogêneos e aproveitar bem o que cada qual possa dar de si a despeito das divergências ou até mesmo de atritos passageiros.

Nos grupos mais reduzidos, como é o caso de uma diretoria de cinco ou seis pessoas, muitas e muitas vezes há incompatibilidades temperamentais e desentendimentos ocasionais, pois, como ensina a sabedoria popular, cada cabeça, cada sentença!

Homogeneidade absoluta não é mesmo possível com um material humano ainda em processo reencarnatório de melhoramento. Mas, é com esse material humano, sujeito aos altos e baixos da experiência terrena, que se realizam as grandes obras. Se o nosso movimento tivesse de esperar que aparecessem somente trabalhadores já depurados de seus velhos compromissos ou sem arestas contundentes, nada teria sido feito até agora.

Há pessoas, no entanto, que ainda não compreendem a nossa situação e, por isso, de quando em quando fazem esta pergunta: – Mas, existem dessas coisas no meio espírita? E por que não? O meio espírita não é uma comunidade de anjos, mas de gente de carne e osso, com os seus defeitos e suas qualidades. É verdade que certos casos já não deviam ocorrer em nosso meio. São casos realmente discrepantes, de projeção, campanhas anônimas etc. etc. Isso prova que ainda existe muita fraqueza humana do lado de cá, tanto quanto em outras atividades humanas.

Não esperemos, pois, que haja um ajustamento perfeito em todos os campos de trabalho espírita, já que as criaturas humanas são mesmo desiguais. Entretanto, pela experiência já vivida e pelo que já se aprendeu na Doutrina até agora, certas dificuldades, causadas pela incompreensão humana, já não deveriam ocorrer entre nós. Afinal, ninguém é perfeito, ninguém chega à seara espírita sem influências do passado, sem alguns prejuízos da educação ou do ambiente de origem. Mas a casa espírita é uma escola. Sim, escola onde cada qual deve se esforçar para melhorar.

Afinal de contas, o que estamos fazendo no meio espírita se ainda estamos presos às mesmas paixões ou se ainda estamos presos às mesmas tendências negativas de outrora? Se ao cabo de tudo, nada mudou em nossa vida, pois continuamos com as mesmas ideias, os mesmos sentimentos, os mesmos hábitos, evidentemente não incorporamos bem os princípios espíritas ao dinamismo de nossa vivência cotidiana. É assunto para reflexões mais sérias.



Fonte: “Ponderações Doutrinárias”, coletânea de artigos publicada pela Federação Espírita do Paraná (FEP).


Deolindo Amorim nasceu na Bahia em 1906 e desencarnou no Rio de Janeiro, em 1984. É considerado, ao lado de Carlos Imbassahy e Herculano Pires, um dos maiores pensadores espíritas das Américas. De estilo professoral, extremamente didático e elegante, Deolindo foi um dos maiores divulgadores do espiritismo como cultura e voltado para a análise de questões da atualidade. Fundou o Instituto de Cultura Espírita do Brasil (Iceb), foi um dos idealizadores da Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas (Abrajee) e graças ao seu empenho, em conjunto com a Liga Espírita do Brasil, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1949, o II Congresso Espírita Pan-Americano.


Obras: Espiritismo e Criminologia; O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas; Africanismo e Espiritismo; O Espiritismo e os Problemas Humanos; Ideias e Reminiscências Espíritas; Allan Kardec, o Homem e o Meio, dentre outras.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O ESPIRITISMO SEM OS ESPÍRITOS


(Revista Espírita, abril de 1866)

 

Ultimamente vimos uma seita tentar se formar, arvorando como bandeira a negação da prece. Acolhida inicialmente por um sentimento geral de reprovação, não vingou. Os homens e os Espíritos se uniram para repelir uma doutrina que era, ao mesmo tempo, uma ingratidão e uma revolta contra a Providência. Isto não era difícil porque, chocando o sentimento íntimo da imensa maioria, ela carregava em si o seu princípio destruidor. (Revista de janeiro de 1866).

Eis agora uma outra que se ensaia num novo terreno. Tem por divisa: Nada de comunicações dos Espíritos. É muito singular que esta opinião seja preconizada por alguns daqueles que outrora exaltavam a importância e a sublimidade dos ensinamentos espíritas e que se gloriavam do que eles próprios recebiam como médiuns. Terá ela mais chance de sucesso que a precedente? É isto que vamos examinar em poucas palavras.

Essa doutrina, se podemos dar tal nome a uma opinião restrita a algumas pessoas, se fundamenta nos dados seguintes:

“Os Espíritos que se comunicam não são senão Espíritos ordinários que até hoje não nos ensinaram nenhuma verdade nova, e que provam a sua incapacidade, não saindo das banalidades da moral. O critério que pretendem estabelecer sobre a concordância de seu ensino é ilusório, por força de sua insuficiência. É ao homem que cabe sondar os grandes mistérios da Natureza e submeter o que eles dizem ao controle de sua própria razão. Nada nos ensinando as suas comunicações, nós as proscrevemos de nossas reuniões. Discutiremos entre nós; buscaremos e decidiremos, em nossa sabedoria, os princípios que devem ser aceitos ou rejeitados, sem recorrer ao assentimento dos Espíritos.”

Notemos que não se trata de negar o fato das manifestações, mas de estabelecer a superioridade do julgamento do homem, ou de alguns homens, sobre o dos Espíritos; numa palavra, de separar o Espiritismo do ensino dos Espíritos, pois as instruções destes últimos estariam abaixo do que pode a inteligência dos homens.

Essa doutrina conduz a uma singular consequência, que não daria uma alta ideia da superioridade da lógica do homem sobre a dos Espíritos. Graças a estes últimos, sabemos que os da ordem mais elevada pertenceram à Humanidade corporal que eles ultrapassaram há muito tempo, como o general ultrapassou a classe do soldado da qual ele saiu. Sem os Espíritos, ainda estaríamos na crença de que os anjos são criaturas privilegiadas e os demônios criaturas predestinadas ao mal para a eternidade. “Não, dirão, porque houve homens que combateram essa ideia.” Que seja, mas quem eram esses homens senão Espíritos encarnados? Que influência teve a sua opinião isolada sobre a crença das massas? Perguntai ao primeiro que chegar se conhece ao menos de nome a maioria desses grandes filósofos? Ao passo que vindo os Espíritos a todos os cantos da Terra manifestar-se ao mais humilde como ao mais poderoso, a verdade propagou-se com a rapidez do relâmpago.

Podemos dividir os Espíritos em duas grandes categorias: aqueles que, depois de terem atingido o mais alto ponto da escala, deixaram definitivamente os mundos materiais, e aqueles que, pela lei da reencarnação, ainda pertencem ao turbilhão da Humanidade terrena.

 Admitamos que só estes últimos tenham o direito de comunicar-se com os homens, o que é uma hipótese: Entre eles há aqueles que em vida foram homens esclarecidos, cuja opinião tem autoridade, e que a gente sentir-se-ia feliz de consultar, se ainda fossem vivos. Ora, da doutrina acima resultaria que esses mesmos homens superiores tornaram-se nulidades ou mediocridades ao passar para o mundo dos Espíritos, incapazes de nos dar uma instrução de algum valor, ao passo que a gente se inclinaria respeitosamente diante deles se se apresentassem em carne e osso nas mesmas assembleias onde se recusam a escutá-los como Espíritos.

Disso resulta ainda que Pascal, por exemplo, deixou de ser uma luz quando passou a ser Espírito, mas que se ele reencarnasse em Pedro ou Paulo, necessariamente com o mesmo gênio, porquanto nada teria perdido, ele seria um oráculo. Esta consequência é tão rigorosa que os partidários desse sistema admitem a reencarnação como uma das maiores verdades. Enfim, será preciso concluir que aqueles que colocam de muito boa-fé, como supomos, sua própria inteligência tão acima da dos Espíritos, serão eles próprios nulidades ou mediocridades, cuja opinião não terá valor, de sorte que seria preciso crer no que eles dizem enquanto estão vivos, e não crer amanhã, quando estiverem mortos, mesmo que viessem dizer a mesma coisa, e muito menos ainda se disserem que se enganaram.

Sei que objetam a grande dificuldade da constatação da identidade. Essa questão já foi amplamente tratada, de modo que é supérfluo a ela voltar. Certamente não podemos saber, por uma prova material, se o Espírito que se apresenta sob o nome de Pascal é realmente o do grande Pascal. Que nos importa, se ele diz boas coisas? Cabe-nos pesar o valor de suas instruções, não pela forma da linguagem, que sabemos por vezes marcada pelo cunho da inferioridade do instrumento, mas pela grandeza e pela sabedoria dos pensamentos. Um grande Espírito que se comunica por um médium pouco letrado é como um hábil calígrafo que se serve de uma pena ruim. O conjunto da escrita terá o cunho de seu talento, mas os detalhes da execução, que dele não dependem, serão imperfeitos.

Jamais o Espiritismo disse que era preciso fazer abnegação de seu julgamento e submeter-se cegamente ao dizer dos Espíritos; são os próprios Espíritos que nos dizem para submeter todas as suas palavras ao cadinho da lógica, ao passo que certos encarnados dizem: “Não creiais senão no que dizemos e não creiais no que dizem os Espíritos.” Ora, como a razão individual está sujeita ao erro, e o homem, muito geralmente, é levado a tomar sua própria razão e suas ideias como a única expressão da verdade, aquele que não tem a orgulhosa pretensão de se julgar infalível a submete à apreciação da maioria. Por isto é tido como abdicando de sua opinião? Absolutamente. Ele está perfeitamente livre de crer que só ele tem razão contra todos, mas isto não impedirá a opinião da maioria de prevalecer e de ter, em definitivo, mais autoridade que a opinião de um só ou de alguns.

Examinemos agora a questão sob outro ponto de vista. Quem fez o Espiritismo? É uma concepção humana pessoal? Todo mundo sabe que é o contrário. O Espiritismo é o resultado do ensinamento dos Espíritos, de tal sorte que sem as comunicações dos Espíritos não haveria Espiritismo. Se a Doutrina Espírita fosse uma simples teoria filosófica nascida de um cérebro humano, ela não teria senão o valor de uma opinião pessoal; saída da universalidade do ensino dos Espíritos, tem o valor de uma obra coletiva, e é por isto mesmo que em tão pouco tempo se propagou por toda a Terra, cada um recebendo por si mesmo, ou por suas relações íntimas, instruções idênticas e a prova da realidade das manifestações.

Pois bem! É em presença deste resultado patente, material, que se tenta erigir em sistema a inutilidade das comunicações dos Espíritos. Convenhamos que se elas não tivessem a popularidade que adquiriram, não as atacariam, e que é a prodigiosa vulgarização dessas ideias que suscita tantos adversários ao Espiritismo. Os que hoje rejeitam as comunicações não parecem essas crianças ingratas que negam e desprezam os seus pais? Não é ingratidão para com os Espíritos, a quem devem o que sabem? Não é servir-se do que eles ensinaram para combatê-los; voltar contra eles, contra seus próprios pais, as armas que eles nos deram? Entre os Espíritos que se manifestam não está o Espírito de um pai, de uma mãe, de seres que nos são os mais caros, dos quais se recebem essas tocantes instruções que vão diretamente ao coração? Não é a eles que devemos o ter sido arrancados da incredulidade, das torturas da dúvida sobre o futuro? E é quando se goza do benefício que se desconhece a mão benfeitora?

Que dizer dos que, tomando sua opinião pela de todo mundo, afirmam seriamente que agora em parte alguma se querem comunicações? Estranha ilusão que um olhar lançado em torno deles bastaria para fazer desvanecer-se. Da parte deles, que devem pensar os Espíritos que assistem às reuniões onde se discute se se deve condescender em escutá-los, se se deve ou não excepcionalmente permitir-lhes a palavra para agradar aos que têm a fraqueza de dar importância às suas instruções? Lá se encontram sem dúvida Espíritos ante os quais cairiam de joelhos se nesse momento eles se deixassem ver. Já pensaram no preço que se poderia pagar por tal ingratidão?

Tendo os Espíritos a liberdade de comunicar-se, independentemente de seu grau de saber, disso resulta uma grande diversidade no valor das comunicações, como nos escritos, num povo em que todo mundo tem a liberdade de escrever, e onde, certamente, nem todas as produções literárias são obras-primas. Segundo as qualidades individuais dos Espíritos, há, pois, comunicações boas pelo fundo e pela forma, e outras, enfim, que nada valem, nem pelo fundo nem pela forma. Cabe-nos escolher. Rejeitá-las todas porque algumas são más, não seria mais racional do que proscrever todas as publicações porque há escritores que produzem vulgaridades. Os melhores escritores, os maiores gênios, não têm coisas fracas em suas obras? Não se fazem seleções do que eles produziram de melhor? Façamos o mesmo em relação à produção dos Espíritos; aproveitemos o que há de bom e rejeitemos o que é mau; mas, para arrancar o joio, não arranquemos o bom grão.

Consideremos, pois, o mundo dos Espíritos como um duplo do mundo corporal, como uma fração da Humanidade e digamos que não devemos desdenhar ouvi-los, agora que estão desencarnados, pois não o teríamos feito quando encarnados. Eles estão sempre em nosso meio, como outrora; apenas estão atrás da cortina e não à frente, eis toda a diferença.

Mas, perguntarão, qual o alcance do ensino dos Espíritos, mesmo no que há de bom, se eles não ultrapassam o que os homens podem saber por si mesmos? É bem certo que eles não nos ensinam nada mais? No seu estado de Espírito, eles não veem o que não podemos ver? Sem eles, conheceríamos o seu estado, sua maneira de ser, suas sensações? Conheceríamos, como hoje conhecemos, esse mundo onde talvez estejamos amanhã? Se esse mundo não tem para nós os mesmos terrores, se encaramos sem pavor a passagem que a ele conduz, não é a eles que o devemos? Esse mundo está completamente explorado? Cada dia não nos revela uma nova face dele? E nada significa saber para onde iremos e o que poderemos ser ao sair daqui? Outrora lá entrávamos tateando e tremendo, como num abismo sem fundo; agora esse abismo é resplendente de luz e nele entramos alegres. E ousam dizer que o Espiritismo nada ensinou! (Revista Espírita, agosto de 1865: “O que ensina o Espiritismo”).

Sem dúvida o ensino dos Espíritos tem limites. Não se lhe deve pedir senão o que ele pode dar, o que está na sua essência, no seu objetivo providencial; e ele dá muito a quem sabe buscar. Mas tal como ele é, já fizemos todas as suas aplicações? Antes de lhe pedir mais, sondamos as profundezas do horizonte que nos descortina? Quanto ao seu alcance, ele se afirma por um fato material, patente, gigantesco, inaudito nos fastos da história: é que ainda em sua aurora, ele já revoluciona o mundo e abala as forças da Terra. Que homem teria tido tal poder?

O Espiritismo tende para a reforma da Humanidade pela caridade. Não é, pois, de admirar que os Espíritos preguem a caridade sem cessar; eles a pregarão ainda por tanto tempo quanto for necessário para desarraigar o orgulho e o egoísmo do coração do homem. Se alguns acham as comunicações inúteis, porque repetem incessantemente as lições de moral, devem ser felicitados, pois são bastante perfeitos para não mais necessitarem delas, mas eles devem pensar que os que não têm tanta confiança em seu próprio mérito e que desejam se melhorar, não se cansam de receber bons conselhos. Não busqueis, pois, tirar-lhes esse consolo.

Esta doutrina tem chance de prevalecer? Como dissemos, as comunicações dos Espíritos fundamentaram o Espiritismo. Repeli-las depois de havê-las aclamado é querer solapar o Espiritismo pela base, tirar-lhe o alicerce. Tal não pode ser o pensamento dos Espíritas sérios e devotados, porque seria absolutamente como alguém que se dissesse cristão negar o valor dos ensinamentos do Cristo, sob o pretexto que sua moral é idêntica à de Platão. Foi nessas comunicações que os espíritas encontraram a alegria, a consolação, a esperança. Foi por elas que compreenderam a necessidade do bem, da resignação, da submissão à vontade de Deus; é por elas que suportam com coragem as vicissitudes da vida; por elas que não há mais separação real entre eles e os objetos de suas mais ternas afeições. Não é enganar-se com o coração humano crer que ele possa renunciar a uma crença que faz a felicidade?

Repetimos aqui o que dissemos a propósito da prece: Se o Espiritismo deve ganhar em influência, é aumentando a soma das satisfações morais que proporciona. Que aqueles que o acham insuficiente tal qual é se esforcem por dar mais que ele; mas não será dando menos, tirando o que faz o seu encanto, sua força e sua popularidade que eles o suplantarão.

Allan Kardec