sábado, 27 de julho de 2013

Nem Espiritismo Laico, Nem Nova Religião

Por Dora Incontri
 
A posição de Kardec ainda não foi compreendida pela maioria e uma das provas disto está no debate ainda atual se o espiritismo é ou não é religião. Por um lado, estão os que se autodenominam espíritas laicos e que defendem a idéia de que Kardec jamais pensou o espiritismo como religião, mas apenas como ciência, filosofia e moral; do outro, estão os que defendem o chamado tríplice aspecto do espiritismo, ciência, filosofia e religião, mas agem e pensam como se o espiritismo fosse apenas mais uma religião. Estes constituem a maioria do movimento espírita brasileiro.
 
Analisemos a polêmica com cuidado, porque os dois lados têm suas razões e os dois lados cometem enganos. De fato, Kardec não quis estabelecer mais uma religião, no sentido comum do termo, (por isso, diz muitas vezes que o espiritismo não é religião), visto que o espiritismo não tem sacerdócio, templos, hierarquia institucional, dogmas de fé e nem rituais que o adepto deva seguir para dizer-se espírita. Qualquer pessoa que aceite os postulados espíritas e procure viver segundo a moral de Jesus pode se dizer espírita, mesmo que jamais tenha pisado num centro espírita ou assistido a uma reunião. Trata-se de uma convicção pessoal, de uma adesão livre, de que  ninguém está instituído para pedir satisfações ou exigir o cumprimento disto ou daquilo.
 
Nesse sentido, portanto, quando os espíritas laicos dizem que o espiritismo não é religião, estão certos. Mas seria melhor dizer: não é mais uma religião, nos moldes das religiões tradicionais.
 
Se Kardec promoveu esse desencantamento, essa crítica e esse esvaziamento hierárquico do universo religioso, guardou aquilo que lhe é essencial. O Livro dos Espíritos declara como a primeira das leis morais a lei de adoração a Deus. Essa adoração pode se manifestar no homem em forma de estudo das leis da natureza – portanto a ciência, como Kepler, Giordano Bruno, Newton e outros afirmaram, pode ser uma espécie de culto a Deus; e em forma de prática de amor ao próximo, na vida social, e, também e sobretudo, em forma de oração, de ligação afetiva do ser humano com a divindade. Ora, o amor ao próximo é a essência ética da maioria das religiões e a oração é um ato indubitavelmente religioso. Não há outra classificação para esse ato universal, por mais que o tornemos simples, espiritualizado, sem ritos, imagens, intermediações, templos, genuflexões ou gestos...
 
Além disso, é das religiões que nos vêm as experiências milenares de contato com a divindade, de manifestações mediúnicas e de revelações morais – grandes espíritos reencarnaram no seio das mais variadas religiões do planeta e exemplificaram uma ética elevada a partir da vivência religiosa. Assim, a religião é uma forma de ser e estar no mundo que não podemos simplesmente deixar de lado, porque constitui parte integrante da nossa consciência. Descendemos da divindade e foram as religiões que revelaram isso.
 
Portanto, falar em espiritismo laico – o que significa dizer um espiritismo destituído de qualquer ligação com o assunto religião – é um contrassenso e uma negação da obra de Kardec.
 
O laicismo nasceu no Ocidente como forma de protesto contra o domínio milenar da Igreja católica. Fala-se em escola laica, em Estado laico, como lugares institucionais que se consideram neutros do ponto de vista religioso e fora da tutela da Igreja. O espiritismo não é neutro em termos religiosos. Kardec critica, reavalia e recria a religiosidade humana, inaugurando uma nova forma de ser religioso, sem jamais negar essa dimensão do homem.
 
 
INCONTRI, Dora. PARA ENTENDER ALLAN KARDEC, ed. Lachátre, Bragança Paulista/SP, 1ª edição, 2004.


sexta-feira, 3 de maio de 2013

O ESPAÇO E OS MUNDOS; NÃO, COLÔNIAS ESPIRITUAIS


Por Sérgio Aleixo

 Nada material pode ser obstáculo aos espíritos. A matéria não pode interditá-los de nenhum modo. Assim, teoricamente, em estrelas, planetas, no espaço sideral, possível é que os invisíveis lá estejam em perfeitas condições. Sabe-se que nem sempre podem os espíritos, entretanto, ir a todos os mundos, ou mesmo estar em qualquer lugar num mesmo mundo, que tudo isso é conforme. Por quê?
 
 
O conceito de mundos transitórios (Kardec assim o batizou) diz que, apesar da ausência de vida na superfície estéril de certos planetas, esses orbes destinados seriam aos espíritos errantes, que os habitariam para repouso, instrução e progresso. Tendo sido esse o caso da Terra durante sua formação, o conceito se vincularia obrigatoriamente à expectativa de que a vida se instale na superfície de tais planetas, ainda inapropriados a ela; apenas em transição para tanto. Desse modo, nada tem ele a ver com as estruturas conhecidas por colônias espirituais; edificações no além, algumas de séculos, protegidas por muralhas, armas e até animais, onde os habitantes teriam uma fruição de gozos e costumes tipicamente físicos, como nutrição, eventos pagos, empregos remunerados, casamentos, etc.; moradias de todos os tipos, com banheiro e cozinha, inclusive; assim como parques, plantações e fábricas, seja de suco, de roupas, de artefatos, etc., etc. À luz da codificação espírita, não passam de abusos ficcionais ditados nos interlúdios invigilantes de médiuns sem discernimento, que acreditam lhes baste a boa intenção e a cega confiança em seus guias para o exercício de suas faculdades. 
 
 
O princípio espírita das criações fluídicas, bom também é que se o diga logo, em nada ampara tais edificações no além; nunca se viu que essas criações exorbitassem o entorno mais imediato do próprio espírito, sua aparência, vestuário, certos objetos, pseudocompanhias, etc.; tudo, porém, subordinado exclusivamente ao pensamento: 1) quando cria ilusões ao espírito, ainda que eventualmente objetivadas nos fluidos; 2) quando cria aparências que visem um fim qualquer, a encarnados ou desencarnados. Um princípio do Espiritismo, além disso, não pode ser aplicado em contradição com os demais. Por que moradias e costumes de fruição carnal existiriam no mundo espírita, se o perispírito não tem funções que demandem nutrição, reprodução, etc., nem o além-túmulo, menos ainda, rigores climáticos que o instabilizem? Grupos, famílias de espíritos, sociedades inteiras deles, em regiões compatíveis com sua constituição fluídica, e unidos por propósitos comuns, com ações planejadas e tarefas várias: isso é Espiritismo! Todavia, nada existe aí que se aproxime das travessuras coloniais. 
 
 
Demonstrado, pois, que os mundos transitórios nada têm a ver com as colônias espirituais; sim, a princípio, com planetas de superfície temporariamente estéril, avanço: e quanto aos mundos que surgem e desaparecem na imensidão sem que a vida se manifeste ali? Certo que não podem chamar-se transitórios, mas nem por isso estariam, necessariamente, sem presenças invisíveis. O conceito de mundos transitórios prevê que os espíritos que neles habitam podem deixá-los livremente, não estando, assim, obrigados a aguardar o surgimento da vida na superfície. Desse modo, por que os espíritos não se reuniriam, para repouso, instrução e progresso, igualmente nos mundos não transitórios? 
 
 
Razoável admitir, pois, que existam: 1) mundos que são habitados apenas espiritualmente de início e, depois, também corporalmente; 2) mundos eventualmente habitados tão só por seres errantes, embora não em especial destinados a estes, por não serem transitórios. Mas não estaria faltando nada a esse panorama, por mais vasto? Eis aí nossa questão. Sim! Sim! Tais considerações somente ambientam os espíritos, a bem dizer, no universo físico, a modo de contingentes invisíveis e, nele, teoricamente, inobstáveis. Dizem alguns, por isso, até que há certo segredo acerca do mundo espírita em Kardec. Um tanto deslumbrados com a literatura ficcional mediúnica e suas colônias, findam por conferir uma proporção absurda àquele silêncio que o espírito Galileu diz estar sendo guardado, até ali, sobre o mundo espiritual. E disso concluem haver mistério em Kardec a respeito da vida espírita. Ora! “Até ali” só quer dizer até aquele ponto do próprio comunicado de Galileu, que apenas falara do modo da criação do universo e silenciara acerca do modo de criação dos espíritos que, nesse sentido, constituem o mundo espiritual, de que Galileu passa então a falar. 
 
 
Antes de tudo, são os espíritos que integram o mundo espírita. E já não é coisa pouca. O que mais se quer conhecer? A vida dos seres errantes por lá! Claro! Bem... Sabe-se que estão isentos de nossas necessidades; mas que possuem ainda um corpo, embora etéreo, sem órgãos, por mais denso. Onde se encontram com esse envoltório fluídico? Somente nos meios físicos do universo, exceção feita à invisibilidade própria dos espíritos? Se a matéria não lhes representa mais obstáculo, porque não podem ir a todos os planetas nessa condição errante? Por que percorrer o mundo espírita não pode ser, afinal, só uma viagem interplanetária, intergaláctica, sem aparatos tecnológicos? Tudo reside na compreensão da palavra espaço, ou melhor: espaços, nas letras kardecianas. Foi dito ao mestre que o espaço é infinito e que aquilo que se julga vazio está ocupado por matéria imponderável, em estado de fluido. Nessa medida, sim, os espíritos estão por toda parte e são povoados todos os globos. Não disseram, aliás, que povoam propriamente o espaço infinito, mas que “povoam ao infinito os espaços infinitos”. Quando se lê, pois, que os espíritos estão no espaço, que transpõem os mundos, a tais domínios tipicamente físicos do universo estão integrados os domínios fluídicos, espirituais. Nestes é que existe o que pode ser obstáculo aos espíritos, de acordo com sua situação perispirítica. Este é o adendo que faltava à ideia inicial de mundos transitórios ou intermediários, razão pela qual se limitou aparentemente a um panorama interplanetário, astronômico. 
 
 
Para Kardec, nosso belo planeta é como um vaso do qual escapa densa fumaça, que vai aclarando à medida que se eleva e cujas partes rarefeitas se perdem no espaço infinito. Esse é o âmbito em que se define seu conceito de atmosfera espiritual terrestre, meio formado por fluidos em vários graus de pureza, um tanto grosseiros se comparados aos que compõem as regiões superiores, razão pela qual são estas, de ordinário, inacessíveis aos espíritos atrasados, que nelas não podem viver, a despeito de visitá-las como estrangeiros e, ainda assim, apenas entrevendo-as. Portanto, segundo suas elevações, os espíritos povoam não apenas a superfície da Terra, entre os encarnados, de onde muitos não conseguem se afastar, mas também o espaço que a circunda, segundo o alvo do foco possível de suas percepções entre as várias camadas de fluidos espirituais do planeta. Como as coisas se passam nesses meios? Naqueles cujos fluidos são bem desmaterializados, sequer o imaginamos. Nas ambiências, todavia, em que a constituição fluídica se apresenta mais identificada à vida corporal, parece razoável admitir, seria menos difícil supô-lo, ainda que, mesmo nessas regiões mais densas, as coisas não possam transcorrer como se aqui se verificassem. Do contrário, afinal, não haveria a menor necessidade do estado de encarnação que, nesse caso, mais pareceria um acidente de percurso, à moda rustenista e, avanço em dizê-lo, era mesmo até esse ponto de distorção conceitual que nos queriam conduzir as almas jesuíticas da inglória causa federativa. 
 
 
A doutrina espírita ensina que os espíritos conservam as faculdades que tinham na Terra; que eles têm visão, audição, sensação, percepção, mas diversamente de quando possuíam um corpo físico, ainda que muitos deles, em erro, julguem que tais coisas se passem, por lá, da mesma forma que no corpo; o modo pelo qual atuam, inclusive. O pensamento dos espíritos atrasados não está esclarecido por vezes, e é então que muitos até julgam viver ainda entre os homens e mulheres, partilhando de suas aspirações, paixões e desejos. Nos meios compatíveis com essa sua natureza, os fluidos chegam a ter, para eles, aspecto tão material quanto, para nós, nossos objetos tangíveis; os combinam e elaboram, consciente ou inconscientemente, para produzir certos efeitos, mas o fazem por outros processos: pensamento e vontade. Podem formar, então, conjuntos com aparência, forma e cor determinadas. Kardec inclui essas possibilidades dos fenômenos peculiares ao mundo espiritual no que chamou laboratório do mundo invisível. Nem de longe lhe confere, todavia, o condão de produzir obras arquitetônicas majestáticas, estruturas complexas ao extremo, sobretudo quando voltadas para atender necessidades que não podem ser satisfeitas no além, ou para um funcionamento quase burocrático de inchadas estruturas organizacionais; ao menos não no mundo espírita kardeciano, mais fidedigno em detalhes reais e, por isso, certamente mais sóbrio. Tedioso, claro, só para o comum dos leitores de romances mediúnicos, estimulados por curiosidades tão ociosas quanto propícias a espíritos menos sérios, que compensam com artifícios ficcionais e vagas de raciocínio a falta de conteúdo realmente espiritual de seus comunicados. 
 
 
Verdade que o mestre publicou, nas suas primeiras revistas espíritas, ditados contendo desenhos mediúnicos da suposta casa de Mozart em Júpiter; todavia o fez a título de inventário aos leitores, para que julgassem o caso como quisessem; além disso, o referido espírito lá estaria em estado de encarnação, não no de erraticidade, o que determina relevantes diferenças de consideração. Espíritos errantes não necessitam de casa ou comida; não padecem doenças e não têm sofrimentos senão de natureza moral; mais pungentes, aliás, que os físicos. Contudo, transitam numa locação que, às vezes, não é a superfície do planeta, e sim o espaço mais ou menos imediatamente acima dela, algumas camadas da atmosfera espiritual terrestre, de fluidos um tanto grosseiros e cuja aparência, em função disso, pode lembrar o meio terreno em básicas referências, mesmo que fugidias; superfície e firmamento, por exemplo. Quem sabe, algo similar aos tais campos, espécies de bivaques, de que Mozart falou a Kardec em primeira mão. [...] já vos dissemos que há mundos particularmente destinados aos seres errantes, mundos que lhes podem servir de habitação temporária, espécies de bivaques, de campos onde descansem de uma demasiado longa erraticidade, estado este sempre um tanto penoso. 
 
 
Independentemente da diversidade dos mundos, essas palavras [‘há muitas moradas na casa do Pai’] podem também ser interpretadas pelo estado feliz ou infeliz do espírito na erraticidade. Conforme for ele mais ou menos puro e liberto das atrações materiais, o meio em que estiver, o aspecto das coisas, as sensações que experimentar, as percepções que possuir, tudo isso varia ao infinito. 
 
 
Poder-se-ia perguntar como é que os espíritos se podem evitar no mundo espiritual, uma vez que aí não existem obstáculos materiais nem refúgios impenetráveis à vista. Tudo é, porém, relativo nesse mundo e conforme a natureza fluídica dos seres que o habitam. Só os espíritos superiores têm percepções indefinidas, que nos inferiores são limitadas. Para estes, os obstáculos fluídicos equivalem a obstáculos materiais. Os espíritos furtam-se às vistas dos semelhantes por efeito [da vontade], que atua sobre o envoltório perispiritual e fluidos ambientes. 
 
 
Existem alguns cujo envoltório fluídico, mesmo sendo etéreo e imponderável em relação à matéria tangível, ainda é muito pesado, se assim podemos dizer, em relação ao mundo espiritual, para permitir que eles saiam do meio onde se encontram. É preciso incluir nessa categoria aqueles cujo perispírito é bastante grosseiro para que o confundam com o corpo carnal, razão pela qual continuam achando que estão vivos. Esses espíritos, cujo número é grande, permanecem na superfície da Terra, como os encarnados, julgando-se sempre entregues às suas ocupações; outros, um pouco mais desmaterializados, ainda não o são o suficiente para se elevarem acima das regiões terrestres [...] A camada de fluidos espirituais que cerca a Terra se pode comparar às camadas inferiores da atmosfera, mais pesadas, mais compactas, menos puras, do que as camadas superiores. [...] a constituição íntima do perispírito não é idêntica em todos os espíritos encarnados ou desencarnados que povoam a Terra ou o espaço que a circunda. 
 
 
Resta saber se neste espaço que circunda a Terra, isto é, se nas camadas de fluidos espirituais do seu entorno, seria impossível que, por uma razão ou por outra, houvesse meios cujas composições fluídicas assumissem só um certo aspecto das ambiências terrenas, já que podem, afinal, variar ao infinito, como vimos Kardec dizê-lo. Os espíritos Bizet e Mesmer prestaram, respectivamente, curiosas informações ao mestre: [...] tive sob os olhos o atroz espetáculo da fome entre os espíritos. Encontrei lá em cima muitos desses infelizes, mortos nas torturas da fome, ainda procurando em vão satisfazer a uma necessidade imaginária, lutando uns contra os outros para arrancar um pedaço de comida que se escondia em suas mãos, dilacerando-se mutuamente e, se posso dizer, se entredevorando; [...] enquanto na Terra se pensa que aqueles que partiram ao menos estão livres da tortura cruel que sofriam, percebe-se do outro lado que não é nada disso, e que o quadro não é menos sombrio, embora os autores tenham mudado de aparência. 
 
 
O mundo dos invisíveis é como o vosso. Em vez de ser material e grosseiro, é fluídico, etéreo, da natureza do perispírito, que é o verdadeiro corpo do espírito, haurido nesses meios moleculares, como o vosso se forma de coisas mais palpáveis, tangíveis, materiais. O mundo dos espíritos não é o reflexo do vosso; o vosso é que é uma imagem grosseira e muito imperfeita do reino de além-túmulo
 
 
Pode haver até alguma dúvida sobre a locação da cena descrita por Bizet: trata-se da superfície da Terra, entre os encarnados, ou do espaço que a circunda, com seus vários meios fluídicos? Todavia, Bizet informa que tudo aconteceria, sim, do outro lado, mas lá em cima. Em que pese aos espíritos conservarem a capacidade de perceber o que na Terra se passa conosco e entre nós, as percepções dos envolvidos na cena vista por Bizet não estão voltadas em nenhuma medida para o que se verifica na vida física; talvez exatamente porque não estariam nas regiões terrestres de fato, entre os vivos. De qualquer forma, veem-se num drama cujo cenário é construído por seu desequilíbrio, com direito a criação fluídica até de um pedaço de comida, tão objetiva no além, que é identificada por um terceiro; este goza, contudo, de melhores condições morais e, a despeito de avistar esse tétrico conjunto de aparência, forma e cor determinadas, logo julga vã a motivação que o gera: satisfazer necessidade que, afinal, ali, não poderá ser atendida, por não haver função do perispírito que a demande. A cena transcorre pungente e horrenda. E Kardec não lhe faz reparo algum. Esmera-se até em defender a idoneidade do espírito comunicante e a precisão de seus informes, classificando a situação de modo quase inédito em seus escritos: prolongação mista da vida terrena, vida intermediária que, se bem não seja física nem propriamente espiritual, é inerente ao estado de inferioridade de certos espíritos e necessária ao seu adiantamento. Claro está, porém, que quase tudo não passa da criação de ilusões desses espíritos a si mesmos, ainda que se objetivem, até certo ponto, nalguns conjuntos fluídicos postos em ação pelo seu pensamento. Colônias? Onde? 
 
 
O Livro dos Espíritos havia lecionado ser o nosso mundo reflexo obscuro desse outro; e Kardec, ser a vida humana decalque dessa outra; entretanto, nesses casos, nada quanto ao aspecto propriamente do meio espiritual, e sim à sua organização societária e respectiva meritocracia. Já a fala de Mesmer bem distingue: 1) mundo espírita; 2) perispírito de seus habitantes. Afiança que o mundo dos invisíveis seria como o nosso, na medida em que o nosso constituiria uma imagem grosseira e muito imperfeita do reino de além-túmulo. Grosseira e imperfeita no que remete, por certo, a nossa forma mortal: comemos, bebemos, nos reproduzimos, para manutenção da vida que, aqui, extingue-se; assim mesmo, porém, nosso mundo não passaria de uma imagem, algo que, em aparência, aspecto, similar se apresentaria, portanto, a certas regiões etéreas, à exceção de fruições corporais, inviáveis nesses ambientes, em nada ecológicos, por não haver mais a morte ali; talvez holográficos, por assim dizer. Insisto: Quem sabe, algo como os tais campos, espécies de bivaques, que originalmente Mozart revelou a Kardec. 
 
 
Para espaços infinitos que são povoados ao infinito seria tão inviável esse aspecto, só o aspecto um tanto terreno de certas regiões fluídicas mais densas? Quer-se evitar o fomento da imaginação criativa de muitos, que os coloca nos domínios da pseudo-revelação luizina e suas desastrosas congêneres. Fato. Entretanto, abandonada a compreensão que, desse assunto, só Kardec pode proporcionar em mais diligentes medidas, é que se lançam os menos avisados exatamente ao fluxo do que lhes parecerá mais detalhado: os romances mediúnicos; em geral, um cortejo absurdo de subversões aos princípios do Espiritismo: espíritos a comer, a beber, a casar, a morar; e, hoje, mesmo a copular, a se reproduzir, com fecundação, gestação, nascimento dos “bebês” e, pasmem, até a morrer, sobrevindo o sepultamento dos perispíritos em cemitérios d’além-túmulo... 
 
 
Já diz muito o fato de que os espíritos inferiores podem, sim, e com frequência, consciente ou inconscientemente, criar ilusões a si mesmos e, em certos limites, até objetivá-las nos fluidos. Nada comparável, no entanto, aos evidentes abusos da subliteratura mediúnica e suas fantasias coloniais. Avanço mais uma vez em dizê-lo: era mesmo até esse ponto nefasto de distorção conceitual que nos queriam conduzir as almas jesuíticas da inglória causa federativa. Ante uma vida espiritual que, na prática, só replica a fruição da vida física, esvazia-se de sentido o princípio espírita da absoluta necessidade da encarnação, abrindo caminho para a ideia de que seria mera exceção punitiva aos que sofrem a queda. Portanto, rustenismo sutil do além, mediante agora a subliteratura de ficção, bem ao gosto popular, em quase tudo ingênuo e, de ordinário, desavisado. Kardec seria bem melhor, mas para este, nada.
 
[...] o espanto cessa quando se sabe que esses mesmos espíritos são seres como nós; que têm um corpo, fluídico é verdade, mas que não deixa de ser matéria; que, deixando seu invólucro carnal, certos espíritos continuam a vida terrestre com as mesmas vicissitudes, durante um tempo mais ou menos longo. Isto parece singular, mas é, e a observação nos ensina que tal é a situação dos espíritos que viveram mais a vida material do que a vida espiritual, situação por vezes terrível, porque a ilusão das necessidades da carne se faz sentir, e se tem todas as angústias de uma necessidade impossível de satisfazer. O suplício mitológico de Tântalo, nos Antigos, acusa um conhecimento mais exato do que se supõe, do estado do mundo de além-túmulo, sobretudo mais exato que entre os modernos. [...] O quadro que apresenta o cura Bizet nada tem, pois, de estranho; vem, ao contrário, confirmar, por mais um grande exemplo, o que já se sabia; e, o que afasta toda ideia de reflexão de pensamentos, é que o fez espontaneamente, sem que ninguém pensasse em chamar sua atenção sobre aquele ponto. Por que, então, teria vindo dizer, sem que se lhe perguntasse, se aquilo era assim ou não? Sem dúvida a isto foi levado para a nossa instrução. Aliás, toda a comunicação traz um cunho de gravidade, de sinceridade e de modéstia, que é bem o seu caráter e que não é próprio dos espíritos mistificadores. 
 
 
Afora o que destaquei de Mozart, Kardec, Bizet e Mesmer, entendo que também São Luís, Erasto e Santo Agostinho rasgaram esse véu, ao se referirem a: 1) mundos intermediários como viveiros da vida eterna, onde os espíritos se agrupam conforme seus graus de adiantamento; 2) regiões similares à Terra, das quais espíritos muito aprisionados à matéria não se podem afastar, bem como não o podem das próprias regiões terrenas; 3) mundos inferiores em que os encarnados, mesmo durante o sono, buscam antigas afeições que os chamam, prazeres mais baixos do que têm aqui, doutrinas mais vis, mais ignóbeis, mais nocivas do que as que professam no corpo, em vigília. Seriam todas essas, no entanto, simples menções a outros planetas, e não a meios etéreos do nosso próprio orbe? Em caso afirmativo:  
 
 
1) Urgiria supor que São Luís se refere ao conceito inicial de mundos transitórios e, com efeito, que busca em meios interplanetários os espíritos afins que, na Terra encarnados, explicam a identidade de caráter tantas vezes observada entre pais e filhos. Não os existiriam por aqui mesmo? 2) Seria preciso crer possível, no pensamento de Erasto, que espíritos materialistas, antes na Terra encarnados e, por cegueira moral, aprisionados violentamente aos laços da matéria depois de mortos, deslocam-se, por vezes, para outros planetas, similares ao nosso, não permanecendo, assim, de preferência, na superfície da Terra, ou no espaço que a circunda. 3) Ter-se-ia que admitir Santo Agostinho a revelar, de espíritos inferiores, verdadeiras viagens interplanetárias durante os períodos de sono e, portanto, em estado de encarnação, o que não é exatamente um facilitador; anote-se que é referida a busca de prazeres ainda mais baixos do que eles têm durante a vigília; em espírito, ainda que presos a um corpo, não podem supor que satisfazem tais paixões senão alucinando, criando ilusões a si mesmos, entre pares igualmente inconsequentes. Tratar-se-ia, pois, de semelhantes interplanetários, localizados em mundos transitórios? Em todos os casos, restaria exorbitado o princípio de economicidade tão caro à razão. Por que imaginarmos alhures os seres que mais provavelmente estão vinculados ao nosso próprio planeta? Por que não estariam nos seus meios correspondentes aos estados sutis da matéria, integrantes da atmosfera espiritual terrestre? 
 
 
Antes de selar como mistério indevassável toda a vida espiritual, melhor admitir-lhe, ainda que fugidias, algo das referências terrenas, sempre tendo em vista, claro, para a análise das comunicações em que apareçam, as vigilantes restrições dos princípios kardecianos: 1) eventuais ilusões que os espíritos podem criar a si mesmos, ainda que objetivadas nos fluidos; 2) aparências que podem criar visando um fim qualquer, a encarnados ou desencarnados; 3) meras ficções psicográfico-obsessivas, cujo fim é a distorção dos ensinos do Espiritismo, sua substituição por outra matriz doutrinária. 
 
 
Fato é que esse prolongamento misto da vida terrena é situação por vezes terrível, sim; isto significa, contudo, que, doutras, nem tanto; fica a depender dos espíritos. Sobretudo na superfície do planeta, mas também no espaço que a circunda, está a massa da população ambiente do mundo invisível. Ela é composta, segundo Kardec: 1) pelos que, não mais podendo satisfazer suas paixões, se agradam da companhia dos encarnados que a estas se entregam, incitando nestes o cultivo daquelas; 2) pelos que se julgam ainda vivos; 3) pelos que, menos atrasados um pouco, embora não menos vulgares, já buscam algum aperfeiçoamento e instrução vendo e observando nossos costumes, mas impacientando-se por faltar-lhes a realidade dos nossos prazeres. Se distanciados, porém, da superfície da Terra e, assim, no espaço que a circunda, só quanto ao aspecto das coisas é possível aos espíritos menos depurados se moverem entre holográficas referências terrenais, próprias ainda dessas regiões etéreas mais densas. 
 
 
Como quer que seja, em nenhuma hipótese atende-se a necessidades que, do outro lado, não é possível satisfazer; não há, lá em cima, como fruir gozos carnais, por falta do instrumento dos mesmos: o corpo físico. Por isso Kardec recorre ao suplício mitológico de Tântalo como oportuna ilustração; a metáfora de tudo que está tão perto e, ao mesmo tempo, é inalcançável. Havia entre os antigos um conhecimento mais exato do estado do mundo espiritual do que entre os modernos, segundo Kardec; pela razão de que estes materializavam os gozos de além-túmulo, bem como suas penas. O Espiritismo discorda terminantemente disso, seja no cristianismo, seja mesmo no islamismo. Diz Kardec sobre certa nuança da vida depois da morte no Alcorão, Surata XXXVII, v. 39 a 47: 
 
 
Sem dúvida se notará que os rios, as fontes, os frutos abundantes e as sombras aí representam grande papel, por faltarem sobretudo aos habitantes do deserto. Os leitos macios e as roupas de seda, para gente habituada a dormir no chão e vestida com grosseiras peles de camelo, também deviam ter grande atrativo. Por mais ridículo que tudo isto nos pareça, pensemos no meio em que vivia Maomé e não o censuremos muito, pois, com o auxílio deste atrativo, ele soube tirar um povo da barbárie e dele fazer uma grande nação. 
 
 
Que diria Kardec então sobre a literatura de Chico Xavier e cia.? Que diria da comida, da bebida, das moradias, dos perispíritos com “calor orgânico” e “pulsação regular” de André Luiz? RIDÍCULO! Alguns querem situá-la numa transição do Catolicismo para o Espiritismo. Mas não vejo que a maioria evolua de Chico Xavier a Kardec; o contrário é que é considerado evolução, sem que praticamente ninguém se dê conta de um tão colossal anacronismo. Ora! Da refinada e cuidadosa concepção do mundo espírita, sem mescla em Kardec, até as bizarras grosserias da literatura de Chico Xavier e quejandos não há senão uma involução lamentável e grotesca.
 
 
De fato, o conceito de mundos transitórios é coisa crua, até insólita inicialmente. Espíritos a viver em meio ao caos dos elementos, até que a vida surja e se organize em planetas temporariamente inférteis, soa um tanto estranho sem o adendo que Kardec adiciona posteriormente: atmosfera espiritual, não mais a simples ação dos pensamentos nos fluidos ambientes, mas regiões etéreas, meios de maior ou menor pureza, que lhes servem de habitat post-mortem. As circunstâncias em que a ideia de mundos transitórios ou intermediários é transmitida ao mestre são, no mínimo, curiosas. 
 
 
Ele desconfia de uma informação de Chopin e lhe diz não compreender ser possível a espíritos errantes a execução de peças musicais no além-túmulo. Mozart, instado por Kardec a dar explicações sobre esse suposto fato, assegura compreender a hesitação do mestre; todavia confirma o dito de Chopin e o justifica com a existência, para os seres errantes, dessas espécies de bivaques, de campos onde descansem de uma demasiado longa erraticidade, embora, com isso, em absoluto, não responda ao que Kardec lhe pergunta. O mestre submete a questão a outro centro espírita, no qual Santo Agostinho junta a essas as informações que definem como mundos transitórios os planetas de superfície temporariamente estéril, mas habitados por espíritos errantes; avança e diz que, em nosso sistema, nenhum orbe existe nessa condição e que, só a Terra, durante sua formação, foi um deles, também conhecidos àquela altura por mundos intermediários
 
 
Esta sinonímia permanece na Revista e não passa explicitamente ao Livro dos Espíritos, no qual Kardec, na verdade, promove uma espécie de harmonização dos ensinos de Mozart sobre campos de descanso e os de Santo Agostinho a respeito de mundos transitórios. Isto se verifica sob o império da matemática, da física, da química, da biologia e, neste caso, sobretudo, da astronomia. O contexto cultural positivista é determinante para o julgamento de Kardec. Ante o paralelismo vocabular entre Espiritismo e astronomia, ele assimila os campos de descanso de Mozart aos mundos transitórios de Santo Agostinho, em cujo ínterim, mais tarde, instala-se a temeridade das colônias espirituais. Não há demérito de Kardec. Houve uma fatalidade. Essas ciências são matrizes metafóricas fortíssimas; a tal ponto que o próprio Espiritismo teria abortado se surgisse antes delas. Nenhuma surpresa, portanto. 
 
 
As coisas findam por se definir melhor no capítulo décimo quarto de A Gênese, no qual Kardec traça um recorte epistêmico brilhante, em que deixa os espaços físicos, materiais, ponderáveis, às ciências, e reivindica os domínios fluídicos, imponderáveis, espirituais, para o Espiritismo. Com isso, os espíritos são postos, enfim, em suas mais precisas fronteiras universais, que se estendem das superfícies planetárias até as inumeráveis camadas fluídicas que as circundam. Tanto os mundos transitórios de Santo Agostinho, quanto os campos de descanso de Mozart, permanecem viabilizados, desde que não padeçam o embaraço reducionista inicialmente provocado pelo paralelismo vocabular entre Espiritismo e astronomia. Diz-se, aliás, que os espíritos estão no mundo espírita, todavia, a ninguém acode o pensamento de que estejam propriamente noutro planeta, ao menos não na superfície de algum deles. Assim, depois de erraticidades algo penosas, tantas vezes acontecidas nas superfícies planetárias, ou nas regiões fluídicas próprias de seus entornos mais imediatos, pode-se admitir sejam os espíritos encaminhados a esses mundos, isto é, na verdade, a essas espécies de bivaques, de campos de repouso também localizados na atmosfera espiritual dos orbes, donde seguem, após períodos mais ou menos longos, em geral, para a reencarnação. Nada, porém, que autorize o mundo espírita a replicar a vida física em peripécias coloniais. 
 
 
O Espiritismo espraia a vida espiritual pelos “espaços infinitos povoados ao infinito”; o espaço que se supõe vazio está cheio de uma matéria em estados que, de ordinário, escapam aos nossos sentidos e instrumentos: esse é o mundo dos espíritos propriamente dito, que interpenetra o universo físico e em tudo o transcende. Estima-se, aliás, que a matéria conhecida represente apenas quatro por cento do universo, cabendo vinte e seis por cento à matéria escura e, assustadores setenta por cento, à energia escura. Pouquíssimo se compreende a respeito do que efetivamente seriam. 
 
 
Para além das nossas conjecturas, no entanto, é bom que se saiba haver estas certezas inflexíveis, o grande legado espírita a nossa modernidade atormentada pela doença de uma suspeita sistemática ao extremo: 1) a alma do justo é recebida como um irmão bem-amado e longamente esperado; a do mau, como um ser que se despreza; 2) segundo a afeição que tenhamos mantido, quase sempre aqueles que conhecemos na Terra vêm receber-nos, ajudar-nos em nossa libertação das faixas da matéria, depois do que reencontraremos a muitos que havíamos perdido de vista, assim como veremos outros espíritos que ali estarão, e os que se encontrarão ainda encarnados, que poderemos, sim, visitar; 3) raro será que haja solidão, porque viveremos em grupos, em famílias, unidos na similitude de tendências e propósitos, segundo nossa elevação; 4) conforme nossas disposições evolucionais e até que não nos haja mais proveito nisto, voltaremos a viver aqui, ou noutros mundos, rumo à vida exclusivamente espiritual.
 

Referências Bibliográficas

O Livro dos Espíritos, 87 e 232.

Revista Espírita. Mai/1859. “Música de Além-Túmulo” e “Mundos Intermediários ou Transitórios”, n. 3. O Livro dos Espíritos, 234 a 236.

Revista Espírita. Ago/1859. Mobiliário de Além-Túmulo, ns. 20 e 22.

A Gênese, VI, 19.

Revista Espírita. Abr/1859. Quadro da Vida Espírita.

O Livro dos Espíritos, 22, 36, 55, 87 e 278.

O Livro dos Espíritos, 232.

A Gênese, cap. XIV, ns. 3 a 5 e 10

O Livro dos Espíritos, 257. O Livro dos Médiuns, Parte II, Cap. IV, n. 74, XXIV.

O Livro dos Médiuns, 2.ª Parte, VIII. A Gênese, XIV, ns. 9 e 14.

Revista Espírita. Mai/1858. Palestras familiares de além-túmulo.

O Livro dos Espíritos, 255.

Revista Espírita. Mai/1859. Música de Além-Túmulo.

O Evangelho Segundo o Espiritismo, III, 2.

O Céu e o Inferno. 2.ª parte, cap. V, Um Ateu, n. 19.

A Gênese, XIV, 9 e 10.

Revista Espírita. Jun/1868. A fome entre os espíritos.

Revista Espírita. Mai/1865. Dissertações Espíritas. Sobre as Criações Fluídicas. Grifo do original.

O Livro dos Espíritos, 237.

KARDEC. A Gênese, XIV, 14.

Cf. Op. cit., n. 278 e comentário ao n. 266.

Revista Espírita. Mai/1859. Música de Além-Túmulo.

Revista Espírita. Ago/1859. Mobiliário de Além-Túmulo, ns. 20 e 22.

Revista Espírita. Jun/1868. A fome entre os espíritos. Negrito meu.

Revista Espírita. Jul/1862. Hereditariedade Moral.

Revista Espírita. Mai/1863. Questões e Problemas. Espíritos incrédulos e materialistas.

O Livro dos Espíritos, 402.

O Livro dos Espíritos, comentário ao n. 317. Revista Espírita. Maio/1859. Cenas da Vida Privada Espírita, ns. 20 a 22.

O Céu e o Inferno. Parte I, cap. IV, n. 14.

Revista Espírita. Nov/1866. Maomé e o Islamismo. Negrito meu.

Os Mensageiros. Cap. 22.

Revista Espírita. Mai/1859. Música de Além-Túmulo. Mundos Intermediários ou Transitórios.

Cf. A Gênese, I, 16.

O Livro dos Espíritos, 160, 215, 287. A Gênese, XI, 27 (ou 28).

 

Fonte: http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2013/05/o-espaco-e-os-mundos-nao-colonias.html

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Afinal, o Espiritismo tem tríplice aspecto?


Por Ronaldo Fontela

 Comumente vemos a opinião quase unânime dos espíritas e das instituições máximas que os representam (as Federações) dizendo que o Espiritismo se divide em 3 aspectos: CIÊNCIA, FILOSOFIA e RELIGIÃO. E o mais contraditório é que apesar de se declararem Kardecistas, dizendo seguirem fielmente a doutrina publicada por Allan Kardec, colocando-o como se fosse insuperável, na prática não é bem assim. Vejamos como Kardec definiu o Espiritismo.
 

“O ESPIRITISMO É, AO MESMO TEMPO, UMA CIÊNCIA DE OBSERVAÇÃO E UMA DOUTRINA FILOSÓFICA. COMO CIÊNCIA PRÁTICA ELE CONSISTE NAS RELAÇÕES QUE SE ESTABELECEM ENTRE NÓS E OS ESPÍRITOS; COMO FILOSOFIA, COMPREENDE TODAS AS CONSEQUÊNCIAS MORAIS QUE DECORREM DESSAS MESMAS RELAÇÕES.” (O que é o Espiritismo, preâmbulo-1859)

 
Como podemos observar, ele não qualificou o Espiritismo como sendo religião, e isto em toda a sua trajetória, pois JAMAIS ele mudou de postura. Alguns alegam que ele muda, quando publica seu último discurso em 1868. Porém apenas se usarmos de recorte, pois o contexto do texto deixa claro que sempre foi mantida a mesma opinião. Vejamos as citações, primeiramente, a que “sustentaria” que é religião:
 

“Se é assim, perguntarão então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto, porque é a Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as próprias leis da Natureza.” (Revista Espírita, dez. 1868, O Espiritismo é uma religião?).

 
Esta passagem é usada para justificar que Kardec declarou a doutrina espírita como religião, que fora de contexto, até teriam razão, entretanto, vejamos os 2 parágrafos seguintes da mesma fonte.


 “Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não     é uma religião? Em razão de não haver senão uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; porque desperta exclusivamente uma idéia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião se levantou.

Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.” (Revista Espírita, dez. 1868, O Espiritismo é uma religião?)
 

Não é difícil perceber, e principalmente para quem ler todo o artigo, que a proposta sempre foi a mesma, porém ele apenas reforça, explica melhor a proposta espírita. O Espiritismo (digo o de Kardec) sem dúvida tem o intuito de estimular a fé, a religiosidade, visto que tinha por objetivo combater o materialismo, que seu oposto é o espiritualismo, do qual o Espiritismo pertence. Logo não podemos separá-lo completamente das religiões, porque ele estudou justamente o produto das ideias religiosas (alma e Deus), o que não significa ser uma religião propriamente dita, são coisas distintas, embora inseparáveis. Pela imensa lucidez, Kardec nunca errou gravemente na estruturação da ciência espírita, sempre foi consciente das dificuldades, das próprias diferenças da ciência convencional e da que ele construiu, portanto, quem estudar todas suas obras depreende isto, ele próprio salientava. 

Finalmente, ele sempre negou ser religião, porque no sentido usual da palavra, ela requer toda uma estrutura de instituições, hierarquias, cultos, que inexistem na doutrina espírita. Quanto ao afirmar positivamente, era devido ao estudo etimológico da palavra religião, que vem do “religare”, em latim, e quer dizer “laço”, conforme podemos ver na citação abaixo, parágrafo que no original antecede a primeira citação contida neste texto.

“O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é, pois, um laço essencialmente moral que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e não apenas o fato de compromissos materiais que podemos romper à vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre as pessoas que ele une, como consequência da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião da família.” (Revista Espírita, dez. 1868, O Espiritismo é uma religião?)
 

Observação, “moral” neste caso quer dizer “espiritual” e não no sentido de “ética”, na França, no século XIX era comum usar esta palavra equivalendo a espiritual, antônimo de material. Com isso, acho que fica evidente a questão do tríplice aspecto, pois esta ideia se desenvolveu no Brasil. Para Kardec jamais houve tríplice aspecto. Por quê? Porque por definição é impossível uma mesma coisa ser ciência e religião, e imagino que Kardec conhecia isso, logicamente. Vejamos algumas características de cada: 
 

Religião: Por definição é INCONTESTÁVEL, pois vem de Deus, e como Deus não erra, logo não há o que discutir, surgem novas denominações dissidentes porque interpretam diferentemente a mesma coisa, mas não questionam a fonte, ou seja, o conteúdo da informação. Vem de cima para baixo, através de profetas que são algumas pessoas com o dom de ouvir ou ser inspirado por Deus.
 

Ciência: Por definição é CONTESTÁVEL, não existe ciência se alguma experiência, teoria, artigo ou hipótese não for passível de contestação, ao contrário, para se considerar algo bem consolidado somente após passar por críticas.


Pronto, definimos a questão do século XIX, mas isto encerra a questão? Não, pois assim como Kardec criou a palavra “Espiritismo” (e outras decorrentes) para não haver problema de anfibologia (duplo sentido), que todas as palavras sofrem com o passar do tempo, porque se agregam novos significados, hoje esta mesma palavra já há mais sentidos. Atualmente a palavra “Espiritismo” também significa religião, logo a palavra por si só já causa polêmica entre os adeptos que não consideram o Espiritismo DE KARDEC como religião. E olha que até agora não saí da fonte, pois se complica a situação se acrescentar as obras de J. B. Roustaing, Chico Xavier etc. Pois elas apresentam todas as características de religião, no seu sentido usual mesmo. E agora, o que fazer? Brigar como doido tentando restabelecer o sentido do século XIX? Brigar até com o dicionário? Fazer obras literárias, instituições, movimentos para “derrubar” que Chico Xavier não é Espiritismo? Não, a meu ver todas estas tentativas são inúteis, inviáveis. E o que fazer então, se é que podemos fazer algo? Penso que a única alternativa viável é esclarecer, pois a ignorância dentro do movimento espírita é enorme, mesmo entre dirigentes. Muitos desconhecem profundamente a parte doutrinária, e principalmente a parte histórica de cada Espiritismo, sim, isto mesmo que falei, de cada Espiritismo. O renomado filósofo Mario Sergio Cortella foi criticado por alguns espíritas ao declarar no Faustão: “Isso variará do tipo de prática de Espiritismo que se tem”, mas é isso mesmo, existem diferenças capitais. A luta dos que, como eu, simpatizam com a ciência espírita de Allan Kardec e não creem totalmente na religião espírita de Chico Xavier e demais autores e simpatizantes que usam o querido Chico como paradigma, não é a de mudar a deles nos baseando em raciocínios, argumentos, fundamentados na própria codificação, é sim apenas de esclarecer, mostrar que os autores são distintos NA FORMA DE CONSTRUÇÃO das doutrinas; um foi científico, outro religioso, mas que visavam o mesmo objetivo.
 

Outra coisa importante que deve ser esclarecida, que a maioria dos adeptos ou simpatizantes desconhecem, é que o Espiritismo brasileiro é dissidente do “Kardecista”, e não o contrário; o que quero dizer com isso? É que ninguém é menos espírita por discordar do movimento espírita, ou de médiuns como Chico Xavier e Divaldo Franco, pois o paradigma, a premissa é a escola Kardeciana. Felizmente há os mais sensatos que vem se separando, como a “Conscienciologia” e o “Cristianismo Espírita”, penso ser este o caminho. Alguns podem refutar, mas ao invés de unir quer separar, contrariando mesmo a codificação? Sim, pois visto que sempre foram separados e sequer sabiam. Acho mais produtivo cada grupo que diverge muito em ideais se separar e conviverem mais fraternalmente, até interagindo, do que ficarem debatendo doutrinas, inutilmente. Pois espírita que é espírita jamais irá interferir no catolicismo, por exemplo, pois são distintos, já com a mesma denominação isso não vale, afinal, instituição que se declara espírita está sujeita à crítica dos espíritas que pensam como eu (como pensava o codificador).
 

Concluindo após esta explanação, respondendo a pergunta do título, não acho que seja possível o tríplice aspecto, considerando religião no sentido usual. Porém, não nego a existência da religião espírita. Uma vez que na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas havia médiuns de várias crenças diferentes, por que não seria possível hoje trabalharem conjuntamente os dois tipos de adeptos espíritas, os da ciência e os da religião espíritas? Por ignorância das diferenças, não se resolve um problema enquanto não o identificamos. Mas já que não nego a existência da religião, da filosofia e da ciência espíritas, por qual razão nego o tríplice aspecto? Pela simples razão que não podemos misturar ciência e religião, por definição. A filosofia será sempre comum a qualquer grupo, porém, os que fazem e seguem a religião não aderem à ciência, e vice-versa. O fator primordial do erro de construção no Brasil foi simplesmente o erro de definição e de nomes, em minha opinião é impossível negar as diferenças, e sem entrar no mérito de valores, não há certo ou errado, existem dois grupos diferentes com o mesmo nome (e olha que Kardec lutou para isto não acontecer), troca-se o nome de uma delas, e penso ser a obrigação da religião espírita (FEB e Cia), em respeito à linguagem e pela precedência da ciência, e terminará o problema de grandes divergências doutrinárias. A história do Espiritismo brasileiro prova que foi até necessidade a criação da religião, porque seus adeptos sofriam perseguições. Por fim, avalio que não há tríplice aspecto, existem sim duas escolas de pensamentos com 2 aspectos cada, tendo o filosófico como denominador comum. Ou é ciência e filosofia, ou é religião e filosofia. Como saber qual sua predileção? Fica fácil um auto diagnóstico, se você sempre sujeita todo ensino à análise, independente de quem assine a mensagem e de qual médium escreveu, você segue a ciência. Já se acredita piamente em algum ensinamento, porque é de um determinado espírito ou médium, e sequer admite que critique seu conteúdo, você segue a religião. Já não se trata mais de quem está certo ou errado, afinal são coisas diferentes que não podem ser mescladas, se trata de discernir uma da outra e resolver o único problema existente, o MESMO NOME.  

Abaixo deixo minha sugestão de vídeo a assistir, de um grande estudioso do Espiritismo, o Cosme Massi, que a meu ver expõe brilhantemente a proposta de Allan Kardec, recomendo este canal, que não é de sua responsabilidade, mas que posta algumas de suas palestras.