domingo, 30 de setembro de 2012

Reflexões Kardecistas Sobre o Pecado

Por Jaci Regis
 
Analisando o comportamento humano deste fim de século, uma onda de perplexidade e medo domina a sociedade. Comparações são inevitáveis. Seria verdadeiro dizer que antigamente era melhor? Que as pessoas eram mais fraternas, mais caridosas, mais cheias de fé, as virtudes capitais do cristianismo? Enfim, houve retrocesso? Parece válido fazer uma digressão histórico-filosófica para entender o processo de mudança que se acelerou tanto neste século 20. Afinal, não há efeito sem causa.
 
 
No início da Idade Média, a Igreja, afirmando obedecer determinações divinas e apoiada no poder temporal, estabeleceu como paradigma para a felicidade pessoal e social, a figura do homem virtuoso e temente a Deus. Por mais de dez séculos sua força foi muito grande e estabeleceu uma consciência individual e coletiva acerca do que era certo e errado. Qualquer desvio, intenção ou impulso contrário ao que foi estabelecido como certo, era pecado. O pecado e o diabo foram armas poderosas, supersticiosas, que também se incorporaram à mente social.
Era preciso mostrar-se virtuoso, sob pena do expurgo social, condenação da Igreja, com punições que incluíam a morte física. Então, as pessoas se organizaram de modo a, pelo menos, aparentar essas virtudes ou recorrer às absolvições. A maioria se acomodava, reprimia impulsos e desejos, considerando, em si mesma, repulsiva a simples ideia de pensar ou ser levada a pensar neles.


A estrutura social foi montada em rígida hierarquização de castas, que foi dito ser natural, estabelecido pela divindade. Por isso, a maioria curvou-se a ela, aceitou seu destino. O convívio familiar refletia o estrato social, de maneira que o pai era o senhor e os filhos, sob certa forma, os servos.


A virtude foi imposta como um fardo pesado, porque se ignorou a realidade pessoal e como mero anteparo aos impulsos, ao desejo. Vencer os impulsos, reprimir o desejo era a meta. A recompensa viria no céu. Ceder aos impulsos e ao desejo era caminho para o inferno. Tudo isso criou um simulacro de virtude, adotado pela sociedade, enquanto no interior de cada pessoa persistia o nebuloso sentido de que a virtude era uma cruz pesada. Frequentemente, contrária à natureza. Isso esclarece porque, cessada a força coercitiva pela falência da autoridade externa, o impulso interior e o desejo do prazer ressurgem muito fortes
 

A LIBERAÇÃO TOTAL


A sociedade medieval foi sendo substituída ao longo do tempo. Ventos de liberação, a princípio tímidos, derrubaram as máscaras, desvelando a face da real condição humana. Um após outro, os tabus foram sendo quebrados. As regras morais abandonadas ou questionadas, sem que se colocassem opções válidas.

Os últimos obstáculos foram finalmente derrubados neste século 20, onde duas grandes guerras mundiais mostraram a face do horror, enquanto as populações cresceram, povos se ergueram em busca de identidade, sociedades superaram o jugo colonialista.


A queda do poder regulador das religiões, que impuseram o formato da moral social, deixou milhões sem um guia respeitável e seguro. A segurança que, mal ou bem, agasalhava as almas mais frágeis — e quem não o é — foi-se.   E agora?  Some-se o avanço da ciência, materialista por definição, às ideologias políticas também sem qualquer ligação com a espiritualidade, com o fracasso da religião. O que sobra? Mesmo assim, seria verdadeiro afirmar que, com 6 bilhões de habitantes, nosso planeta azul tem uma população moralmente inferior à da Idade Média ou anteriormente à ela?


Por fim, o grito de liberdade das mulheres no Ocidente (no Oriente virá logo), com a comunicação eletrônica, pelo rádio, televisão, internet, cinema e meios gráficos cada vez mais atrativos tornaram nosso mundo muito diferente, ágil, dinâmico, caótico e problemático. Como se diz, houve a liberação total. Aleatória e emocional, a liberação parece desconhecer limites e joga os incautos num espaço indefinido. O egoísmo, o culto do “eu” surgem como caminho de realização, não sem causar confusões no ser.


Desvalorizada, pressionada, condenada, a criatura humana ansiou recuperar o ar de liberdade, a que, afinal, não estava propriamente acostumada. Como seria de esperar, os mais afoitos ou desequilibrados, vão aos extremos, na vã ansiedade de preencher o vazio com comportamentos exóticos, provocativos e niilistas. O corpo, antigamente desprezado, ocultado, agora é motivo de exploração inédita. Valorizado, adorado, desnudo, é sede de emoções sexuais que entram pelo visual e aquecem a mente, embrulhando mais do que se supõe o precário equilíbrio das almas humanas.


OS SETE PECADOS CAPITAIS


Tanto a Igreja Católica como a Reforma Protestante sempre se utilizaram do pecado e do diabo como formas de coerção e medo. Os sete pecados capitais, que teriam sido propostos por Santo Agostinho, eram apontados como caminhos sem volta para o abismo e a perdição.


A reação moderna foi, justamente, louvar o pecado. Como afirma Roberto Carlos na sua música, “tudo o que eu gosto é ilegal, é imoral ou engorda”. O pecado virou atrativo, gostoso, inevitável. O egoísmo perdeu o disfarce e o que importa é a satisfação do ego. Desvalorizada, pressionada, condenada, a criatura humana ansiou respirar o ar da liberdade


O corpo, considerado caminho da perdição, lugar dos instintos, antes escondido, velado, foi desnudado, mostrado, endeusado. A sexualidade, ancestralmente reprimida, condenada, virou objeto de consumo. Viva o prazer!  O prazer é o natural. Mas, que prazer? Eis a questão a ser resolvida nos próximos anos...


Por ora, a filosofia mudou. Não se procura o ser, o ser do ser. Não se debruça sobre a natureza do homem, transcendendo o percurso berço-túmulo. A ciência e o materialismo redefiniram o ser humano: não mais o ser com corpo e alma, mas o ser de corpo sem alma. A educação, as diretrizes vivenciais passaram a se basear exclusivamente no aqui e agora, sem transcendência espiritual.


Diariamente, a mídia lança no ar, nos jornais, nas televisões, propagandas e afirmações mentirosas, com o intuito não disfarçado de obter vantagens e mostrar que os mentirosos são espertos, vencedores. Fragrantes diários de mentira estão nos artigos de consumo, com qualidade, peso e preço mentirosos, embalados em caixas e plásticos coloridos, para não citar a natural qualidade geralmente encontradas em políticos, mestres na utilização pessoal da mentira.


Todo o esquema econômico ataca as pessoas, explorando os sete pecados capitais, estabelecidos pela religião. A industrialização infernalizou a vida social. O ser humano foi reduzido à condição de consumidor. A propaganda estimula o consumo, através da exploração dos sete pecados capitais.


Nenhum apelo às virtudes, na forma como sempre as considerou. O Amor foi engolfado pelo sensual, o sexo pelo sexo, sancionando a luxúria. Beber e comer deixam de ser atitudes naturais para se transformarem em formas de realização pessoal, com destaque para as bebidas que mudariam segundo a propaganda, até os pensamentos, exaltando a gula.


A cobiça é colocada como forma de energia pessoal, seja de objetos, de pessoas e situações, na busca de status. Invejar já não é pecado, mas uma forma ativa de gerar promoções pessoais, vencer competições e deixar o outro para trás. A avareza é sustentada como um ato lícito, sendo incensados e admirados os que acumulam milhões, sem considerar a licitude de suas riquezas, apresentados como vitoriosos, mesmo que paguem salários baixos ou desprezando a miséria em torno.


A preguiça ganha notoriedade. Não trabalhar e viver sem esforço é visto como o paraíso. Milhões sonham com favores ou sorte ou aguardam ansiosos a aposentadoria precoce para nada fazer ou são estimulados ao lazer pelo lazer. Playboys e mulheres arrojadas vivendo à toa são mostrados como modelo a ser seguido.


A ira tem seu elogio nas reivindicações nos motins, nas formas agressivas adotadas por pessoas e grupos. Depois da ira de Deus, apregoada por messias e missionários, temos a ira popular, nacionalista ou coletiva, tolerada e estimulada por interesses vários. Falar em vaidade no momento atual é pleonasmo. Tudo gira em torno da beleza mesmo artificial, postiça ou eventual. A modéstia e a simplicidade foram arquivadas como objetos sem uso desejável.


Evidentemente que as modificações no cenário econômico e mesmo, limitadamente, o apelo ao consumo tem um lado positivo, pois o bem-estar é direito de todos. Mas também desafiando o equilíbrio dos mais centrados, estimulado o desequilíbrio latente dos dúbios e abrindo as portas aos descentrados.


A exaltação do ser consumidor confere-lhe o poder. O poder de compra ressalta o valor da pessoa, que dispondo de recursos monetários, usufrui das vantagens do mundo moderno, um inferno de prazeres, oportunidades de gozo e lazer. É como se a humanidade se livrasse de um manto pesado e escuro. Aparentemente tudo pode ser feito, alcançado e é lícito


Mas, o outro lado da moeda continua existindo, chamando à reflexão e impondo caminhos não desejados. Os agentes desse processo de infernalização social não estão imunes aos ataques de suas próprias necessidades interiores. E, sobretudo, não poderão se esquivar da morte. Enquanto não vem a doença, os males e os problemas psicológicos, todos se julgam acima do bem e do mal.


A REAÇÃO


Enquanto os elementos mais desagregadores da sociedade, através da mídia, principalmente, usufruem, irresponsáveis, o sucesso de suas incursões, produzindo filmes, programas de televisão, editando revistas e jornais, motivando e estimulando comportamento insensatos, atos ilícitos e até criminosos. Enquanto isso a juventude parece muito desarvorada, aderindo a formas destrutivas de vivência, parte dela entregue às drogas, ao álcool e cigarro, sem bandeiras visíveis, uma parte mais responsável pergunta-se: como enfrentar e resolver ou, pelo menos, encaminhar uma maneira de conduzir a vida de maneira menos perigosa e mais produtiva. Alguns chegam a temer o futuro. Mas a história mostra que haverá sempre uma saída, nem sempre a mais satisfatória, mas que, por um determinado tempo, apazigua o ambiente litigioso. Qual será, porém, a solução?


Não podemos profetizar como as soluções se encaminharão. Indicamos “soluções” porque serão plurais. Resultarão da convergência de fatores que se erguerão diante dos conflitos, das descobertas da ciência e das necessidades insuperáveis das pessoas.


■ A Volta da Religião

Uma das formas para enfrentar o desequilíbrio seria a volta do apelo religioso. Além das igrejas tradicionais, outras mais agressivas entram em cena, prometendo o paraíso aos seus adeptos. Entretanto, não oferecem um rumo de libertação. Ao contrário, tentam, de alguma forma, mais sofisticadas e modernas, reviver a repressão, o pecado e o diabo, retendo as mentes no patamar da negação e do medo. Os que se sentem perdidos ou cronicamente inseguros, voltam-se para elas, querendo o apoio dos poderes divinos que as igrejas afirmam representar. A evangelização, afirma-se, é a salvação.


Os católicos evangelizam.
Os protestantes evangelizam.
Os espíritas cristãos evangelizam.


Todos explicam e indicam os evangelhos e vêm em Jesus Cristo, a fonte de toda a verdade, o doador da vida. Evangelizar seria, enfim, o remédio para todos os males. Entretanto, essa evangelização incorre nos mesmos erros antigos. Via de regra, cria crentes, dá uma crença. O crente ouve as preleções e alguns se movem no sentido da caridade, mas a maioria parece acreditar que sua adesão à evangelização representa uma espécie de seguro de vida contra os problemas.


Os protestantes pentecostais são estimulados a acreditar que a crença em Jesus Cristo lhes dará saúde, prosperidade e segurança. Os espíritas cristãos, por sua vez, podem crer que sua adesão à evangelização garantirá a proteção dos bons Espíritos. Os católicos se agasalham sob o manto dos santos, esperando milagres, graças e segurança.


O grande movimento de evangelização parece desenvolver-se dentro de uma visão circular e egoística, criando uma legião de adeptos determinados a se salvar ou obter algum resultado palpável. Pelo menos, não produz imediata influência sobre a população.


■ Apelo à Ética

Também os ateus e materialistas tentam reagir ao estado das coisas, apelando para os valores éticos. Fale-se em ética, mas num sentido estritamente legalista, jurídico, constitucional. O compromisso ético pode ser formal, embora útil, aprisionado aos fatores eventuais da vida terrena, segundo a visão materialista.

■ Solução Política

No quadro caótico — falamos especificamente da realidade brasileira — muitos acreditam que a solução será, antes de tudo, política, isto é, pela melhoria da distribuição da renda, ao acesso amplo e ilimitado à educação, com a criação de empregos, dando condições dignas de habitação, saúde e saneamento à população carente ou marginalizada.
 

Na verdade, numa sociedade que exalta o consumo, quem não tem o poder de consumir se sente e é, por isso, excluído. E ninguém aceita ser excluído definitivamente, gerando as tensões e explosões sociais, necessárias para mover a inércia das elites.


Todavia, já tivemos experiências em que se supunha que uma igualdade de classes, uma economia planejada, centralizada e estatal, com eliminação do lucro, seria a solução. E não foi, ainda que tenha obtido algum resultado, à custa do cerceamento da liberdade, perseguição, mutilações e chacinas. Um preço muito alto, para muito pouco. Parece que só na democracia é possível alcançar os resultados desejados, mesmo que, aparentemente, demore mais. Progresso sem liberdade é quimera, é falso.


A ESPIRITUALIZAÇÃO


Entretanto, a solução real só virá com a espiritualização das relações humanas. Parece, à primeira vista, que é uma solução ingênua. Como espiritualizar se as religiões, que se encarregaram da parte espiritual da humanidade, são impotentes ou mantém-se em patamares superados? Apesar disso, somente a visão da natureza espiritual do ser humano dará uma luz no escuro caminho da sociedade contemporânea.


Sem que a visão espiritual da natureza humana prevaleça, as soluções serão precárias e incompletas. Essa visão espiritual, correspondendo à espiritualização da vida, não será produto de religião alguma, mas do amadurecimento e das pesquisas. Na verdade, será o ponto decisivo e moldará o pensamento humano de maneira a transformar a relação entre as pessoa.


A espiritualização é mais do que crer; é dar um sentido humanista, livre e aberto à vida, em que a natureza espiritual da pessoa se sobressairá como agente de mutações profundas. Será baseada na imortalidade e na reencarnação, como elementos decisivos no processo de renovação da sociedade, sempre que representarem uma visão ampla, liberta do processo vivencial e não apenas instrumentos limitados de punição ou expiação moral.


Espiritualizar é transcender o horizonte materialista, sem desprezar a existência ou maldizer a relação humana. Ao contrário, é, sob certa forma, aprimorar o humano, projetando-se para um compromisso dinâmico com a vida.


Nesse sentido, pode-se admitir até o que Allan Kardec preconizava no início da criação do Espiritismo. A espiritualização, dando um novo sentido à existência da pessoa e da vida terrena, não significará, por não ser uma crença, a unanimidade ou a homogeneização psicológica e formas de ver a partir desse núcleo central. Por isso, poderá admitir várias formas de crenças, como visões particulares, conforme as necessidades de pessoas e grupos, que se acomodam ao nível evolutivo de cada um.
 


Fonte: Abertura - jornal de cultura espírita, março de 2000. Licespe – Santos-SP.


Jaci Regis (1932-2010), psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi o fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”, “Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.


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