sábado, 4 de fevereiro de 2012

O Espiritismo, a Heresia e o Evangelho



Por Dalmo Duque dos Santos


“Estás de volta, meu amigo, e não perdeste teu tempo (...) Chegou a hora de a Igreja prestar contas do depósito que lhe foi confiado, da maneira como praticou os ensinamentos do Cristo, do uso que fez da sua autoridade, enfim do estado de incredulidade a que conduziu os espíritos”. Mensagem do Espírito d’E para Allan Kardec ( 30/09/1863) – Obras Póstumas


O Espiritismo é, entre outras tantas coisas, um código moral em cuja referência ética estão contidos os princípios universais de conduta encontrados em todas sociedades históricas. Sua essência fenomenal e de conceitos é milenar, mas sua fundação como síntese doutrinária e sistematizada, bem como sua organização científica experimental, somente foi possível no século XIX, num contexto geo-histórico no qual os conhecimentos e valores humanos e sociais estavam sofrendo profundas transformações e questionamentos.
 
 
A principal referência ética ocidental, na qual a sociedade européia e francesa estava inserida, ainda era a moral judaico-cristã, então sob o domínio sócio-institucional do clero romano e protestante. Mesmo com o advento do racionalismo cartesiano e do iluminismo no século anterior, o mundo ocidental ainda estava preso aos costumes feudo-clericais, desenvolvidos durante os séculos medievais, e que na Era Moderna se cristalizaram em forma de um sistema conhecido como Antigo Regime, no qual o catolicismo tinha um papel de destaque.
 
 
A mentalidade européia já havia conhecido a força revolucionária iniciada nos Estados Unidos e cujo apogeu se daria na França. Mas, quando tudo parecia ter mudado com a queda dos regimes absolutistas, com a extinção dos estamentos sociais privilegiados e da escravidão, surge na Europa uma onda contra-revolucionária e conservadora reivindicando a antiga ordem na qual uma aristocracia deveria fazer valer seus interesses sobre a maioria. Todas as conquistas que pareciam ter elevado a Humanidade a um nível mais avançado foram sendo esquecidas para dar lugar às tradições que consagravam a lei do mais forte e a desigualdade.
 
 
Na base dessa grande reação estava o instituto da religião católica. Foi dela e de suas doutrinas dogmáticas que brotaram as forças ideológicas e superestruturais reacionárias que rejeitaram as mudanças que dariam um novo rumo na história humana; foi ela uma das principais forças de sedução e poder que desviaram Napoleão Bonaparte do seu antigo ideal libertário, para servir de suporte de repressão e garantir os novos interesses do “cristianismo capitalista”. Nada melhor do que uma religião organizada e a coerção social do clero para colocar freio nos impulsos transformadores. Nada melhor do que a dupla ameaça ideológica, de crime político e heresia religiosa, para aqueles que contestam as tradições. Se havia um novo establishment, a Igreja respondia pelo principal elemento ideológico do sistema, agora adaptado aos tempos modernos.
 
 
Apesar de todas as circunstâncias inovadoras no pensamento, a superstição e o medo ainda continuaram sendo amplamente explorados pela classe política e clerical. Métodos como a delação, a confissão e a excomunhão voltaram a ter a mesma força dos tempos antigos. Essa era a situação moral da sociedade européia na qual nasceu o futuro Professor Rivail. O menino que iria se tornar Allan Kardec, filho de pai maçom e de família burguesa, teve que ir estudar na Suíça para fugir da rígida educação jesuítica imposta pela nova ordem napoleônica.
 
 
Mas, por que Kardec interessou-se pelos temas religiosos ou transcendentais, no caso os temas bíblicos, quando poderia ter permanecido nas especulações filosóficas ou no prazeroso campo experimental da mediunidade? Por que o Evangelho, porque o Céu e o Inferno e a Gênese, quando tudo está muito bem colocado e definido no Livro dos Espíritos? Kardec queria agradar a gregos e troianos, a religiosos e não religiosos? Duvidamos muito dessa hipótese, já que suas idéias eram tão independentes e demolidoras quanto as de Darwin, Spencer, Nietzsche e Marx.
 
 
O Evangelho Segundo o Espiritismo e seus outros livros dão uma nova visão sobre a temática bíblica, sendo a síntese da heresia que sempre despertou no clero a fúria e a violência contra todos os que desafiam os seus dogmas. Então, por que esse esforço de comparação do Espiritismo com a cultura religiosa do Antigo e Novo Testamentos? Se Kardec tivesse nascido na China ou na Índia, provavelmente teria comparado o Espiritismo com as idéias de outros filósofos daquelas regiões do Oriente, como fez com as de Moisés e Jesus? Cremos que não, porque tal comparação não foi apenas uma obra do acaso e sim parte de um contexto histórico respaldado por uma missão de grande significado espiritual, cuja função tinha muitas semelhanças e ligações históricas com a missão de Moisés e de Jesus. O Espírito de Verdade não é mera coincidência, muito menos uma expressão insignificante no trabalho de Kardec; sua identidade não é uma simples questão de ponto de vista ou de interpretação de suas mensagens, mas a própria essência filosófica do cristianismo puro e autêntico, perdido nos séculos de decadência moral da civilização motora da Humanidade contemporânea.
 
 
O Evangelho não uma religião no sentido vulgar e institucional, mas está repleto de religiosidade e está presente em todas as obras de Kardec, em todas as suas atividades e em todos os momentos em que a Doutrina Espírita teve que dar provas de sua autoridade e identidade superior aos sistemas filosóficos comuns. Entendemos que Kardec aproveitou uma excelente oportunidade para desfazer uma antiga e importante confusão histórica, “... são chegados os tempos em que todas as coisas devem ser restabelecidas em seu sentido verdadeiro...”. O cristianismo, que havia sido apropriado criminosamente pelo clero romano, não podia ser comparado positivamente com o Espiritismo. Era necessário mostrar o cristianismo verdadeiro, sem dogmas, sem hierarquia sacerdotal; o cristianismo de Deus e não o de César.
 
 
Como entender o Espiritismo sem compreender a essência moral do cristianismo, sem as fantasias biográficas e invencionices históricas sobre Jesus e dos apóstolos, alimentadas pelo catolicismo? O Evangelho de Kardec tinha mesmo que ser queimado em praça pública pela Inquisição, como realmente aconteceu em Barcelona em 1863. Afinal, nele não se encontram brechas literárias e teológicas para justificar o papado e a sua infalibilidade, muito menos para a idéia absurda de que “Fora da Igreja não há salvação”.
 
 
A mensagem do Espírito d’E é bem ilustrativa nesse ponto: “ Não é de admirar, pois, o encarniçamento com que o clero combate o Espiritismo; é levado pelo instinto de conservação. Ele, porém, já viu suas armas embotar-se contra esse poder nascente; seus argumentos não conseguiram vencer a lógica inflexível; só lhe resta o do demônio, recurso bem fraco para o século XIX”.
 
 
Na concepção política do clero, Kardec representava um grande perigo para o sistema e para a superestrutura católica; era um novo Martinho Lutero, na verdade um novo Jan Huss... Para o clero o seu Evangelho era o mais perigoso de todos os textos apócrifos, inclusive aquele de Tomé que nunca foi encontrado... Nem quando Ernest Renan publicou sua obra realista sobre Jesus a Igreja se mostrou tão incomodada como quando Kardec e o Espíritos resolveram comentar as máximas de Jesus. Muitos desses Espíritos foram sacerdotes católicos e grandes nomes da escolástica e da patrística, aumentando mais ainda o ódio contra aquele desconhecido e humilde professor de Paris. Realmente, Kardec não estava preocupado em agradar ninguém, a não ser a sua consciência.
 
 
O desenvolvimento da moral judaico-cristã no Ocidente ocorreu em meio aos conflitos dos dogmas de fé da tradição teológica oriental, representando a ortodoxia, versus os dogmas racionalistas das escolas gregas, representando a heterodoxia. Enquanto o dogma de fé serviu historicamente como objeto de fetiche, culto sacralizado e sustentáculo da estrutura político-clerical, o dogma filosófico serviu como instrumento de reflexão e mecanismo de defesa do pensamento autônomo, da heresia e da contestação.
 
 
No seio do cristianismo encontramos essas duas correntes do pensamento herético em todas as épocas e algumas delas progrediram tanto no terreno institucional que foram perdendo sua marca contestatória, como o catolicismo e o protestantismo. Essa é uma tendência conservadora que ronda o movimento espírita, sobretudo naqueles núcleos onde o mediunismo e o comportamento dogmático superam o conhecimento doutrinário. Em alguns grupos esse comportamento chega mesmo a assumir o aspecto de seita.
 
 
O Espiritismo liga-se ao Cristianismo exatamente pelos dogmas filosóficos e têm suas origens históricas nas chamadas heresias cristãs, movimentos sociais onde se cultivava o sentido puro e original da ética cristã. A idéia de heresia tinha para os gregos um significado de autonomia de pensamento e conduta. O herege é aquele que pensa e age livremente sem nenhum obstáculo ideológico. O chamado cristianismo espírita ou “espiritismo cristão” é, ou deveria ser, no mínimo, essencialmente herético, à esquerda da religião dogmática sem, no entanto, perder suas raízes religiosas, relacionadas ao comportamento natural da lei de adoração.
 
 
Se o pensamento filosófico evolui, o pensamento ou a experiência místico-religiosa também acompanha essa transformação, tanto no psiquismo como na sua expressão exterior e social. Quando Jesus ensinava que o verdadeiro templo é o que está dentro das pessoas, sendo o corpo humano uma espécie de santuário, estava naturalmente se referindo às manifestações místico-religiosas que deixaram de ter significado material e exterior, mas que continuam espiritual e interiormente vivas na consciência. Esse é o progresso e a evolução religiosa que o Espiritismo nos ensina. Tudo que antes vinha sendo expressado formalmente, de maneira idealizada e simbólica, em forma de compromissos cerimoniais e rituais, agora pode ser expressado espontaneamente em forma prática, no comportamento, na transformação de atitudes.
 
 
Nas religiões tradicionais geralmente os defeitos humanos não são da responsabilidade das pessoas, mas de causas que lhes fogem do controle, coisas tipo do “pecado original”. Como no Espiritismo não há essa possibilidade, pois as leis naturais são sempre educativas e sem privilégios fictícios de salvação artificial, se insistirmos em não mudar de atitudes teremos duas opções: rejeitamos a doutrina, pois sua moral não se coaduna conosco - tornando-se até mesmo causa de irritação e contrariedade - ou praticamos a auto-dissimulação, mais conhecida como hipocrisia.
 
 
Se escolhermos a mudança, ela também deve ser de forma natural, gradual, sem forçamentos, embora possa ser organizada ou sistematizada como forma de aprendizagem. Os defeitos precisam ser transformados em virtudes; é uma necessidade evolutiva. O egoísmo e a agressividade, que foram virtudes nos remotos tempos das cavernas, por questão de sobrevivência, hoje já não são mais necessários, embora ainda os tenhamos como impulsos e reações momentâneas nas situações em que nos sentimos ameaçados.
 
 
Também nas religiões tradicionais esses conflitos psicológicos sempre foram manipulados num jogo maniqueísta de controle social e interdição da privacidade. Fomos educados durante milênios nessa perversão da moral e da religiosidade, onde a culpa e o perdão se tornaram objetos de exploração política e comercial. Essa tendência já deveria ter sido banida do mundo através do Espiritismo e da Psicologia, mas o vício sacerdotal de controle e manipulação de mentalidades ainda é muito forte em nossas culturas. Somos viciados nessa dependência de sempre ter alguém resolvendo por nós os nossos problemas e assumindo nossas responsabilidades.
 
 
No movimento espírita encontramos, naturalmente com herança histórica, ainda hoje, as matrizes das mentalidades do pensamento e comportamento filosófico-religioso, que são os modelos psicológicos encontrados nas seitas judaico-cristãs (fariseus, saduceus, essênios, escribas, terapeutas, nazarenos, samaritanos, etc.) e que foram objeto intenso de análise, crítica e analogia comportamental nas parábolas e cenas vivenciais de Jesus registradas nos evangelhos.
 
 
Antes de serem judaico-cristãos esses arquétipos ideológicos são humanos e poderiam ser encontrados em qualquer cultura humana, exatamente porque eles representam a síntese dos problemas e contradições da experiência moral humana em processo dialético de transformação (o velho versus o novo). Assim como encontramos na mitologia grega os tipos psicológicos envolvidos com eternos conflitos existenciais, na cultura judaico-cristã temos personagens de comportamento semelhante. Dessa forma, quem ingressa no pensamento e no movimento espírita não assimila de imediato sua essência doutrinária porque já carrega no seu psiquismo essas marcas culturais que precisam ser aclimatadas ao novo ambiente ideológico.
 
 
Até mesmo Allan Kardec, ao fazer essa relação entre a cultura dos Espíritos com a cultura humana deixou sua marca pessoal, seu ponto de vista e suas referências psicológicas na elaboração da doutrina espírita. Os próprios espíritos que emitiram e opinaram sobre conceitos filosóficos nas obras básicas espíritas são caracterizados por essas marcas culturais. Mas todos eles, apesar dessas diferenças pessoais de enfoque, trazem em comum a marca herética nos seus pensamentos e emoções. Querem demolir o passado e construir um futuro sem os erros que direta ou indiretamente ajudaram a cometer.
 
 
A filosofia espírita é muito abrangente em relação aos problemas humanos e cosmogonias do universo. Porém, é no terreno moral e comportamental que está a sua razão de ser, a raiz vital que vai interferir e gerar mudanças no terreno social. Saber quem somos, de onde viemos e para onde vamos não implica nenhuma repercussão no meio exterior se não houver repercussões significativas no conjunto de elementos morais que formam o nosso mundo íntimo e que nos serve de bússola existencial. É aí que entram em cena os códigos morais que surgem em todas as civilizações.
 
 
O Evangelho de Jesus é um deles e expõe perfeitamente todos os princípios que identificam as leis universais e as propostas de transformação evolutiva do ser humano que encontramos em todos os demais códigos. Não existe nele nada de superior ou inferior aos outros. Ele é apenas o código mais adequado para necessidades que nele se identificam. Todos os exageros que nele encontramos geralmente são erros de interpretação elaborados tendenciosamente com alguma intenção menos digna de bloquear o progresso e a liberdade humana, como o controle, o exibicionismo, a ameaça e a exploração ideológica.
 
 
Enquanto os espíritas permanecerem ligados intelectual e emocionalmente aos autênticos conceitos dessa doutrina, sua ligação com o Evangelho será sempre histórica e pura e este será um código moral harmônico, representando a constância, o equilíbrio, a sensatez, a consciência, a autenticidade e a espontaneidade humanas. Do contrário, sem essa relação de fidelidade, ele será sempre incompreensível, impraticável, conflituoso, passional, hipócrita, artificial, formal, etc. Por isso, todo rótulo que se dá ao Espiritismo é superficial e insignificante em relação à sua grandeza doutrinária.
 
 
O Espiritismo não é apenas uma religião, porque não é pequeno e limitado como as religiões têm sido praticadas; não é apenas uma filosofia porque antecede e ultrapassa as premissas filosóficas humanas, dessas que se viciam na ginástica intelectual prolixa e inútil; não é também apenas uma ciência porque não se restringe, como a maioria delas, ao jogo interesseiro, repetitivo e espetacular de fenômenos. É, ao mesmo tempo, tudo isso, no sentido de que possui religiosidade própria, tem uma mística sadia e inconfundivelmente cósmica, possui uma filosofia tão nobre e inteligente quanto a grega e contextualizada e pragmática como a romana; possui uma ciência objetiva e cujas intenções são as mais verdadeiras e humanas, como a prova da imortalidade e o exercício da cura. Por acaso não encontramos tudo isso relatado na experiência vivencial de Jesus? Não é essa a essência das parábolas, das bem-aventuranças, reconhecidas em nosso tempo pela sabedoria do Mahatma Gandhi com o verdadeiro espírito da Lei Universal? Não é esse o sentido verdadeiro dessas palavras do Espírito de Verdade: “....dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos” ?
(Conferência realizada no Instituto Cultural Kardecista de Santos- ICKS, em 14 de fevereiro de 2003)


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