Por Maria das Graças Cabral
Durante
todo o trabalho de sistematização da Doutrina dos Espíritos, Allan Kardec, na
condição de Codificador, se disponibilizou de forma efetiva a tirar dúvidas e
fazer análises do que se escrevia e/ou falava a respeito do Espiritismo. Nunca
deixou de dirimir as dúvidas daqueles que de forma sincera buscavam a
compreensão da nova doutrina, estimulando o estudo sério e efetivo, e estabelecendo
de forma clara os fundamentos e objetivos da mesma.
Nesse
sentido travou vários diálogos com pessoas cujos propósitos eram os mais
diversos. Desde os simples “curiosos” aos opositores contumazes. Entretanto,
buscava primeiramente “captar” o verdadeiro propósito do inquiridor, pois não
perdia seu tempo, com discursos improdutivos.
Na
obra intitulada “O que É o Espiritismo”, Kardec tem por objetivo apresentar uma
“iniciação preliminar” da Doutrina Espírita, através de respostas a “questões
fundamentais” que lhe eram lançadas com frequência.
Daí
organiza três capítulos sob a forma de diálogos, com três personalidades que se
opõem ao Espiritismo. No primeiro capítulo seu inquiridor é um crítico, no
segundo um cético e no terceiro um sacerdote católico.
No
presente artigo faremos algumas considerações do diálogo desenvolvido com o personagem
religioso, na condição de um dos mais contumazes opositores da Doutrina dos
Espíritos, por ver nesta, uma ameaça à sua religião e aos seus dogmas.
Inicialmente
Kardec antes de se propor a responder aos questionamentos que seriam feitos
pelo sacerdote, deixa claro que não é seu propósito “convertê-lo” às ideias
espíritas, acrescentando que o inquiridor terá a liberdade de repudiá-las ou aceitá-las,
pois “o Espiritismo não cuida de impor-se a ninguém e que não veio forçar
convicções”. (2001: p. 71)
Faz-se
por oportuno a transcrição de um pequeno trecho, onde Allan Kardec assim se
expressa:
“O
Espiritismo não se impõe porque, como disse, respeita a liberdade de
consciência. Compreende muito bem, por outro lado, que toda fé imposta é
superficial e só oferece aparências de fé; nunca é a fé sincera. Expõe seus
princípios aos olhos de toda a gente, de modo que possa cada um formar opinião
com conhecimento de causa. Os que aceitam, leigos ou sacerdotes, fazem
livremente porque o acham racionais. De nenhuma maneira, porém, abrigamos
rancor contra os que não são do nosso parecer. Se existe uma luta aberta entre
a Igreja e o Espiritismo, não fomos nós que a provocamos. Disso estamos
convencidos”. (2001: p 72)
A
partir de tais considerações trava-se um longo diálogo, sincero, às vezes
ácido, mas muito esclarecedor para os quiserem adentrar ao estudo da Doutrina
Espírita. O religioso de início se coloca asseverando que, “assistindo ao
advento da nova doutrina” e sendo sabedor que esta traz princípios que “deve
condenar, a Igreja tem certamente o direito de discuti-los e os combater”, prevenindo
seus fiéis “contra o que considera errôneo”. (2001:
p 72)
Kardec
prontamente observa que a Igreja não se ateve apenas aos limites da discussão,
mas foi além publicando escritos e fazendo sermões levantando a injúria, a
calúnia, perseguindo e desfigurando maliciosamente os princípios da Doutrina. Ao
que o sacerdote alega que a Igreja não poderia ser responsabilizada por “alguns
membros menos educados”. O Codificador contrapõe “lembrando” que as agressões, calúnias
e perseguições não partiram apenas dos fiéis, mas também e principalmente, dos “Príncipes
da Igreja”.
Não
obstante, o que realmente preocupa ao sacerdote é o fato de o Espiritismo não
estar em todos os pontos concorde com a religião católica. A esse respeito, Kardec
com muita coerência o adverte que todas as demais religiões podem dizer o mesmo,
até porque, dentro das próprias religiões existem as divergências.
No
que concerne às cisões que ocorrem no seio das religiões, faz-se por oportuno
os esclarecimentos feitos pela professora Maria Ângela Vilhena quando assim se
expressa:
“(...) a existência no interior das religiões de todo um
complexo de crenças e práticas que guardam entre si maior ou menor grau de
semelhanças, proximidades e distanciamentos. Às vezes, quando da predominância
da diversidade interna, de afastamentos dos fundamentos tidos por alguns como
sendo ortodoxos, formam-se grupos representativos de posturas antagônicas e
concorrentes. Pode ocorrer que quando as críticas acirradas vão tornando o
diálogo cada vez mais áspero e até mesmo impossível, entre seus membros surjam
cismas e rupturas. Essa é uma das razões pelas quais, em situações-limite, das
disputas aparecem cisões internas, exclusões e desmembramentos em subgrupos”.
(2008: p. 13/14)
E acrescenta adiante:
“Pretende-se, assim, demonstrar que o campo religioso é
um campo de disputas não apenas entre diferentes religiões, mas também que no
interior da mesma religião formam-se dissensões, grupos disputantes, cada qual
imbuído da pretensão da correta interpretação dos princípios doutrinários e
práticas a eles correlatas”. (2008: p. 13/14)
Portanto,
é fato que as discordâncias e dissenções existem entre as religiões constituídas,
e muito comumente dentro de suas próprias hostes. A título de exemplo a referida autora se
reporta ao Judaísmo e suas várias vertentes, como ultra ortodoxa, conservadora,
liberal, renovada, mística cabalística. O Budismo tibetano, o taoísta, o
movimento Soka-Gakai, ou o da Perfeita Liberdade. O próprio Catolicismo também
abriga várias tendências, como a Teologia da Libertação, os padres cantores que
optam - segundo as palavras de VILHENA - pelo show-missa. E os Protestantes, que tem os que seguem a Igreja
Renascer em Cristo, a Universal do Reino de Deus, ou a Pentecostal Brasil para
Cristo. (2008: p. 15)
No
que tange ao Espiritismo, preceitua a autora, que se encontram referências, “ao
Espiritismo kardecista ortodoxo, ao movimento que alia a Umbanda ao Kardecismo,
ou ainda ao Espiritismo catolicizado”. (2008: p. 15)
Diante
das observações feitas por Kardec, o religioso prossegue seus questionamentos, pontuando
como o “cerne da questão”, o fato de o Espiritismo defender certos conceitos
combatidos pela Igreja, como a reencarnação, a presença do homem na Terra antes
de Adão; nega a eternidade das penas, a existência do demônio, do purgatório e
do fogo do inferno. Vale ressaltar também que a Doutrina dos Espíritos, tira a
autoridade dos clérigos para perdoar pecados, pois estabelece que cada um é
responsável pelos próprios atos, e não serão palavras ou rituais que irão
modificar a situação espiritual de ninguém. (2001: p. 79)
Em
resposta a tais argumentos, o Codificador assevera que “há muito tempo essas
questões vêm sendo discutidas, e não foi o Espiritismo que as trouxe para o
terreno dos debates”. E acrescenta que tais problemas fomentam controvérsias na
própria teologia. (2001: p. 79)
Não
obstante, o Mestre observa que o que mais importa, independentemente da crença,
é que os seres humanos se tornem melhores, pois a prática do bem está pautada
numa lei superior.
Daí,
Kardec de forma clara e objetiva, que faz parte de sua personalidade e de seu
discurso, assim se expressa:
“Creia,
se lhe agrada, que não temos senão uma existência corporal. Isto não lhe
impedirá de nascer aqui ou em outra parte, à sua revelia, se assim tiver que
ser”.
“Creia
que o mundo inteiro foi feito em seis vezes vinte e quatro horas, se tal for
sua opinião. Isso não impedirá que a Terra ostente escritas em suas camadas
geológicas, as provas do contrário”.
“Creia,
se lhe apraz, que Josué deteve o movimento do Sol. Isso não impedirá que a
Terra gire”.
“Creia
que há apenas seis mil anos encontra-se o homem na face da Terra. Por isso, os
fatos não serão impossibilitados de provar o absurdo da crença”.
“E
que dirá o senhor se, um belo dia, quando menos esperar, a inexorável Geologia
vier demonstrar, com vestígios incontestáveis, como já provou tantas outras
coisas, a anterioridade do homem”?
“Creia
na existência do demônio; creia em tudo o que quiser, se a crença nessas coisas
puder torná-lo bondoso, humano e caritativo para com seus semelhantes”. (2001:
p. 80)
Pode-se
visualizar com que propriedade o Codificador estabelece os fundamentos da
Doutrina dos Espíritos. Em seguida discorre resumidamente sobre reencarnação, penas
eternas, e demônio, objetivando esclarecer seu interlocutor.
Não
obstante, vale pontuar outro aspecto considerado pela Igreja Católica como uma
afronta à sua dogmática. Trata-se da questão que se refere à comunicabilidade
dos Espíritos.
O
sacerdote afirma que a Igreja proíbe as comunicações com os Espíritos dos
mortos, por serem contrárias à religião, e por estarem “formalmente” condenadas
pelo Evangelho e por Moisés, que pronunciou a “pena de morte”, para aqueles que
descumprissem tal determinação.
Kardec
começa por esclarecer que a proibição de Moisés, era justificada pela
necessidade do legislador hebreu fazer seu povo abandonar os costumes egípcios.
Na realidade, as evocações eram meios de adivinhações, explorados pelo
charlatanismo e pela superstição. Diante de um povo indisciplinado e endurecido,
arraigado às práticas e crenças egípcias, estabeleceu a pena de morte em sua
legislação, para que pudesse conter a população e alcançar seus objetivos. (2001:
p. 84)
E
daí contra argumenta que se a proibição de evocar os mortos procede da
Divindade, como estabelece a Igreja, a pena de morte contra os deliquentes,
seria também por ela ditada. E acrescenta que “se a Lei de Moisés é para a
Igreja artigo de fé sobre certo ponto, por que não seria sobre todos? Por que
recorrem a ela quando convém e a desprezam quando não convém? Por que não
seguir todas as prescrições, entre as quais a circuncisão, que Jesus sofreu e
não aboliu”?
Obviamente,
há de se compreender que a Lei Mosaica traz nas tábuas do Sinai, os preceitos
morais indestrutíveis. E numa segunda parte a legislação civil, que se adequava
aos costumes da época, e do povo, como qualquer outra legislação que disciplina
as relações sociais.
Não
obstante, Kardec salienta que a Igreja não nega a comunicação dos bons
Espíritos, tidos como “santos”, nem dos “demônios”, tão ou mais poderosos que
aqueles! Observa-se um contra senso nessa proposição, pois se os que estão no “ápice
da bondade” ou no “ápice da maldade” podem se manifestar aos encarnados, o que
impediria a todos os outros terem a mesma capacidade e/ou oportunidade? Afinal,
não estão todos na mesma condição de Espíritos? Por que essa “lei” só atingiria
os extremos?...
Na
realidade, assevera o Mestre a esse respeito, que as religiões, supondo-se na
posse exclusiva da verdade absoluta, identificam como demoníaca toda e qualquer
doutrina que não seja exclusivamente ortodoxa, ao seu ponto de vista...
Aliás,
o Codificador de forma exaustiva em várias oportunidades afirma que os
Espíritos não vêm para derrogar as religiões. Mas para revelar novas leis da
natureza. Acrescenta que os religiosos devem observar se seus artigos de fé,
seus dogmas, podem anular uma lei natural que é obra de Deus.
Finalizando,
nada melhor do que as orientações do Mestre quando se dirigindo ao seu
interlocutor, assevera que a “melhor maneira de uma pessoa adquirir
conhecimentos sobre o Espiritismo é estudando a teoria”, pois os fatos virão
depois naturalmente, e serão compreendidos.
Afinal,
é através das obras propostas por Kardec, que vão desde O Livro dos Espíritos,
passando pelo O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o
Inferno, A Gênese, e A Revista Espírita, que segundo o próprio Codificador “é
um curso de aplicação, pelos numerosos exemplos que oferece e os
desenvolvimentos que encerra, sobre a parte teórica e a parte experimental”,
que poderemos compreender “em parte” a grandiosidade e complexidade que envolve
o nosso destino de Espíritos imortais, todos sob o comando de uma Lei Maior, da
qual temos apenas uma pálida ideia.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
VILHENA,
Maria Ângela. Espiritismos – Limiares entre a vida e a morte. Ed. Paulinas. 1ª
edição. São Paulo/SP. 2008.
KARDEC,
Allan. O Que é o Espiritismo. Ed. LAKE. 26ª edição. São Paulo/SP. 2001.
Nenhum comentário:
Postar um comentário