segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

KARDEC e as PALAVRAS

Por Maria das Graças Cabral





Ao iniciarmos o estudo de O Livro dos Espíritos, nos deparamos em sua introdução, com o grande cuidado de Allan Kardec, para com as palavras a serem empregadas no corpo doutrinário espírita. Num primeiro momento, poderíamos entender que tal diligência, se devesse ao fato de ser o Codificador por formação acadêmica, um pedagogo, lingüista insigne, que falava alemão, inglês, italiano, espanhol e holandês. Escreveu gramáticas, aritméticas, estudos pedagógicos superiores; traduziu obras inglesas e alemãs. Ou seja, na condição de poliglota e profundo conhecedor da língua francesa, seu idioma pátrio, sabia da importância das palavras para que um discurso fosse claro, e alcançasse seu objetivo. 



Não obstante, poderíamos também considerar, que na condição de organizador de toda uma gama de conhecimentos, advindos de Espíritos de alta evolução para a estruturação de uma obra, que segundo J. Herculano Pires, seria “o código de uma nova fase da evolução humana”, buscasse ‘cuidar’ das palavras a serem empregadas nessa sistematização, de forma a evitar que o uso inadequado das mesmas, viesse a “desvirtuar” os preceitos doutrinários.

E assim, o Codificador inicia a Introdução de O Livro dos Espíritos dizendo que: - “Para as coisas novas necessitamos de palavras novas, pois assim, o exige a clareza de linguagem, para evitarmos a confusão inerente aos múltiplos sentidos dos próprios vocábulos.” Observa-se claramente, que o mestre trata a doutrina como algo inovador, ciente da grandeza de suas revelações. Sabia que os assuntos abordados, envolviam grandes questionamentos da humanidade, que até então nunca haviam sido tratados tão objetivamente. Não queria portanto, que palavras com sentidos já definidos, distorcessem os preceitos fundamentais da nova doutrina.

Em seguida, o Mestre Lionês reporta-se às palavras espiritual, espiritualista, espiritualismo, demonstrando que as mesmas já tinham uma significação bem definida - entendendo-se por espiritualismo - toda filosofia religiosa que prega a existência de um ser ou realidade distinto da matéria. Entendia Kardec, que não aplicando à Doutrina Espírita tais palavras, evitar-se-ia a multiplicação das já numerosas causas de ambigüidade e de duplo sentido, (anfibologia), que acabariam por gerar graves conflitos de entendimento.

Daí, o codificador estabelece que “em lugar das palavras espiritual e espiritualismo” - para designar a Doutrina dos Espíritos - a palavra adequada seria espírita ou espiritismo. E conclui afirmando, que “Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou se o quiserem, espiritistas.” Segundo Kardec, O Livro dos Espíritos tem como especialidade a Doutrina Espírita, e como generalidade o Espiritualismo, daí, a referida obra traz abaixo do título, as palavras Filosofia Espiritualista.

Ocorre, que o cuidado de Kardec, foi totalmente negligenciado pelos espíritas. É fato que identifica-se na abundância de obras publicadas, nos discursos e na fala da grande maioria dos espiritistas, não só palavras, mas teorias e filosofias, totalmente estranhas ao corpo doutrinário espírita, e que alteram frontalmente os seus preceitos.

Aliás, desde a morte de Kardec, o Espiritismo vem sofrendo cruéis distorções. Vale lembrar que a própria Revista Espírita, com a sua morte, caiu nas mãos de Pierre Gaëtan Leymarie, que por seu excessivo espírito de tolerância, desvirtuou a finalidade da mesma, abrindo suas páginas à propaganda de filosofias espiritualistas, inclusive à de Roustaing, que diverge frontalmente do Espiritismo.

Não obstante, faz-se por oportuno ressaltar, os desdobramentos sofridos pela palavra “espírita“, designada por Kardec aos adeptos da Doutrina dos Espíritos. O referido vocábulo, viria a ser acompanhado de certos adjetivos, visando fazer uma distinção ideológica no próprio meio espírita. Nos idos de 1860, quando o Brasil despertava para o estudo da nova doutrina, recém chegada ao país, já começavam a surgir divergências de pensamento com relação aos aspectos filosófico, científico e religioso da mesma. Diante da discordância, passaram os espíritas da época a serem identificados, dependendo da linha de pensamento, por espíritas científicos, espíritas místicos, ou espíritas kardecistas.

Com o passar do tempo, algumas adjetivações se consubstanciaram, como é o caso do “espírita cristão”, que é a denominação dada ao adepto do Espiritismo Cristão, lançado pelo advogado de Bodeaux e opositor de Kardec, Jean Baptiste Roustaing, na obra Os Quatro Evangelhos, editado pela FEB.


Hodiernamente, a variedade de adjetivos aumentou grandemente dentro do movimento espírita, posto que, se tem espírita, roustenguista, chiquista, andreluizista, laico, religioso, kardecista, ramatista, livre-pensador, etc. Pode-se asseverar que hoje, o movimento espírita é formado por numerosas correntes espiritualistas, conhecidas como Espiritismo.

Não obstante, na busca por uma identidade filosófica e/ou religiosa, e em razão da ‘anfibologia’ criada para a palavra ‘espírita’, aquele que se considera adepto da Doutrina dos Espíritos, positivada nas Obras Fundamentais que formam o Pentateuco, e codificadas pelo mestre Allan Kardec, identifica-se como “espírita kardecista“, ou simplesmente “kardecista“, distinguindo-se das demais correntes de pensamento espiritualista, e dos seguidores de cultos afro-brasileiros, os quais também se auto-denominam espíritas.

Alguns companheiros, julgam que “espírita kardecista” seria uma redundância, pois todo Espiritismo deveria ser kardecista. É fato que seria uma redundância, se não estivéssemos diante de tantas correntes espiritualistas que adotaram a denominação de espírita.

Vale ressaltar, que há inúmeros espíritas que não são kardecistas. Alguns nunca leram nenhuma obra codificada por Allan Kardec. Seriam considerados crentes. Não obstante, a Doutrina Espírita é uma doutrina anti-dogmática, racional e evolucionista, que prega a fé raciocinada, e exige de seus adeptos o estudo constante e aprofundado de seus princípios libertadores, positivados nas obras fundamentais, quais sejam: O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno, A Gênese, o pequeno livro introdutório ao estudo da doutrina O que é o Espiritismo e Obras Póstumas, que segundo J. Herculano Pires, representa o testamento doutrinário de Allan Kardec.

Diante do exposto, é fato que os cuidados do Codificador para que a Doutrina dos Espíritos não se ‘perdesse nas palavras’, não impediu que tal fato ocorresse.

Hodiernamente, aqueles que estudam a codificação com dedicação e de forma atenta, constatam com profundo pesar, a adulteração dos preceitos doutrinários, presentes nas traduções e nas novas edições das obras fundamentais da Doutrina Espírita; na ‘importação’ de filosofias estranhas aos preceitos espíritas presentes na vasta produção literária publicada e divulgada; nos discursos, falas e textos. Enfim, a anfibologia se faz presente no discurso espírita, apesar de todo o cuidado de Kardec em evitar que o Espiritismo viesse a se enredar em suas malhas, gerando os atuais conflitos de entendimento.

Aliás, é fato que o desvirtuamento da Doutrina dos Espíritos, já vai muito além das palavras e das fronteiras, posto que o Brasil, é o maior exportador de obras e de divulgadores espíritas.

Na verdade, a cada dia, me admiro mais e mais com o que leio, ouço e presencio, por parte de espíritas, independentemente de classe social ou do grau de escolaridade. Como também, me espanto com os rumos tortuosos tomados pelo movimento espírita brasileiro.

Não obstante, não podemos abandonar a luta. Alguns companheiros já me perguntaram: - Fazer o que, diante da dimensão do problema? Resposta que não quer calar: - Cada um faça a sua parte. Não sejamos omissos, covardes, ou acomodados, pois a responsabilidade é individual. Vamos com muito amor e disposição, viver, estudar e divulgar com fidelidade a Doutrina Espírita, positivada com brilhantismo nas obras fundamentais, pelo gênio do insigne codificador Allan Kardec. As conseqüências virão naturalmente com o tempo. Afinal, somos Espíritos eternos!




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CABRAL, Maria das Graças. Quem foi Hyppolite Leon Denizar Rivail, mundialmente conhecido como Allan Kardec? IN: http://umolharespirita1.blogspot.com/
CABRAL, Maria das Graças. Os Inimigos do Espiritismo. (Parte II) IN: http://umolharespirita1.blogspot.com/
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Ed. LAKE, SP/SP, 62ª edição, 2001.
LARA, Eugênio. Kardecista ou Espírita? IN: http://www.espiritnet.com.br/

4 comentários:

  1. Pois é... e eu que trabalho com palavras o dia inteiro, as vezes tenho a impressão de que estou recriando um discurso com idioma desconhecido.

    Você tem razão, não devemos ficar calados. Pelo menos, o meu self grita há muito tempo.

    Um grande abraço.

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  2. Gostei muito do seu texto, só me resta uma dúvida.
    Esta confusão toda de palavras atualmente vieram através
    de obras mediúnicas e também de alguns oradores brilhantes
    propositadamente. Você não acha?

    Luiz Carlos

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    1. Luiz Carlos, seja bem vindo ao Blog Um olhar Espírita! Realmente, todo o desvirtuamento doutrinário é produto de distorções motivadas por interesses e divergências pessoais dos encarnados e desencarnados, que acabam por atingir frontalmente a Doutrina Espírita. Por isso precisamos estudar efetivamente as Obras Fundamentais, para que possamos separar o "joio do trigo", e apontar as distorções doutrinárias. Abraço fraterno.

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  3. Parabéns pelo texto. Muitas vezes sinto desânimo ao ler e ouvir as besteiras que falam ou escrevem em nome do espiritismo. Estudo com afinco as obras de Kardec e repasso para meu grupo de estudos. Mas, estou sozinha na região onde impera o espiritismo católico.

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