Por Jaci Regis
Três
questões serão debatidas neste trabalho:
1.
Como
conciliar o fato de o Espiritismo se declarar, simultaneamente, uma revelação e
uma filosofia;
2.
É
possível caracterizar a obra de Kardec como uma obra filosófica?
3.
Como
resolver o paradoxo da fé raciocinada?
O
objetivo final é provar que o Espiritismo é uma filosofia.
No livro
“A Gênese”, Allan Kardec afirma que o Espiritismo é uma revelação e procura
mostrar o seu caráter. Mas, também, ao longo de sua obra e de forma taxativa,
caracteriza-o como uma filosofia.
Devemos,
pois, em primeiro lugar, tentar compreender o que sejam filosofia e revelação.
Comecemos por filosofia.
Não tem
sido fácil definir o que seja filosofia. Entretanto, existe um conceito
espontâneo de que a filosofia é uma parte essencial da atividade do homem.
Ligada à sabedoria, ao exame e à discussão exaustiva, embora não conclusiva,
das causas e dos seres, a filosofia tem sido caracterizada como uma atividade
superior do homem, um exercício indispensável ao saber e à certeza.
Historicamente,
distinguem-se duas formas de exercício da filosofia: de um lado a
socrático-platônica, que exprime uma concepção do eu, isto é, uma autorreflexão
do espírito sobre os seus supremos valores teóricos e práticos, sobre os
valores do verdadeiro, o bom e o belo. De outro, a aristotélica, que apresenta,
antes de tudo, uma concepção do universo. Embora tenha havido uma
regularidade pendular entre essas duas concepções, tende-se a uma acumulação, a
uma conjugação desses pontos, pois a filosofia é simultaneamente as duas
coisas: uma concepção do eu e uma concepção do universo.
Em
síntese, pode-se compreender que a filosofia é uma autorreflexão do espírito
sobre seu comportamento e, ao mesmo tempo, uma aspiração ao conhecimento das
últimas ligações entre as coisas.
Quanto à
revelação, analisaremos, ainda que rapidamente, as colocações feitas por Allan
Kardec no capítulo I de “A Gênese”, servindo-nos da tradução de Guillon Ribeiro
(edição da FEB). Nele, o autor define revelação como “dar a conhecer uma
coisa secreta ou desconhecida”. Logo, “deste ponto de vista, todas as ciências
que nos fazem conhecer os mistérios da Natureza são revelações e pode dizer-se
que há para a Humanidade uma revelação incessante” (item 2). E adiante: “O que
de novo ensinam aos homens (os grandes gênios, messias, missionários) quer na
ordem física, quer na ordem filosófica, são revelações (grifo de
Kardec). “Se Deus suscita reveladores para as verdades científicas, pode, com
mais forte razão, suscitá-las para as verdades morais, que constituem elementos
essenciais do progresso. Tais são os filósofos, cujas ideias atravessam os
séculos” (item 6). No tocante à revelação religiosa, diz Kardec: “implica a
passividade absoluta e é aceita sem verificação, sem exame e discussão” (item
7).
Finalmente,
quanto ao Espiritismo, afirma Kardec: “é uma verdadeira revelação, na acepção
científica da palavra”, isto é, dá “a conhecer o mundo invisível que nos cerca
e no meio do qual vivemos sem o suspeitarmos, assim como as leis que o regem,
suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o
habitam e, por conseguinte, o destino do homem depois da morte” (item 12).
Kardec coloca
o Espiritismo como uma “revelação científica” que é caracterizada por ser
“divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração
fruto do trabalho do homem”. É uma revelação científica, enfatiza: “por não ser
ensino (dos Espíritos) privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do
mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos,
dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao
raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao
contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa,
nem imposta à crença cega; porque é deduzida pelo trabalho do homem, da
observação aos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções
que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele
próprio as ilações e aplicações” (item 13 - grifos de Kardec).
Isso fica
mais claro ainda quando ele analisa a questão: “qual a autoridade da revelação
espírita, uma vez que emana de seres de limitadas luzes e não infalíveis?”
Nessa aparente fragilidade, o Codificador aponta sua característica básica, ao
afirmar que o Espiritismo é fruto da elaboração entre pessoas de dois planos de
vida. Os Espíritos propõem, mas os homens concorrem com o seu raciocínio e seu
critério, tudo submetem ao cadinho da lógica e do bom senso. Isto é, o homem se
beneficia dos conhecimentos especiais que os Espíritos dispõem pela posição em
que se acham, sem abdicar do uso da própria razão (item 57).
Esse
caráter específico da revelação espírita é, também, uma inovação no campo
filosófico, antes dominado apenas pela cogitação a partir de um ponto de
observação unilateral, isto é, da busca e da inquietação do homem perante o
mistério e as contradições do ser, diante de si mesmo, da existência e do
universo. Agora, esse mesmo cogitar é enriquecido pela contribuição de homens
que passaram a existir numa dimensão diferente, — os Espíritos — mas dentro da
humanidade.
Sendo, em
lato senso, urna elaboração da razão humana — encarnada e desencarnada — o
Espiritismo é uma reflexão sobre o ser e o universo, abrangendo a totalidade e
não se detendo no particular. A palavra “revelação” é, num primeiro sentido,
uma contradição nesse quadro e só é aceita por Kardec a partir de uma visão
didática, para que a intervenção das inteligências desencarnadas seja
compreendida no processo.
Poderá a
obra de Allan Kardec ser categorizada como filosófica? Ou melhor seria
considerá-la uma obra didática? Encontramos no seu transcorrer uma reflexão
sobre o ser, o belo, o bom? Há, em seu bojo, cogitações sobre a natureza
essencial das coisas, uma visão do universo e das relações últimas entre os
objetos? Sim, a resposta é afirmativa.
Entretanto,
o fato desses temas serem abordados não significa, necessariamente, que a obra
seja filosófica. O que caracteriza esse aspecto é o fato de apresentar uma
reflexão, propor soluções e inovar na abordagem de temas que, sendo universais
e se constituírem razão da cogitação da inteligência, se enquadrem num quadro
amplo da inquietação do homem.
Analisada
sob esse ângulo, a obra de Kardec é, em seu conjunto, uma reflexão filosófica.
O próprio “O Livro dos Espíritos” é um filosofar dialético entre duas
inteligências humanas, reunidas no ato de refletir sobre os fundamentos do ser,
do destino e de Deus. Semelhante ao diálogo do Banquete, de Platão, Kardec e o
Espírito da Verdade, maieuticamente confabulam num mesmo nível de inquietude.
Esse debate dialético não espelha um superior ministrando lições a um inferior.
Mas, duas potências do saber dialogam, exprimindo visões específicas que
resultam na síntese doutrinária do Espiritismo. A partir desse diálogo, Kardec,
seja nos comentários que aduz às questões ou em capítulos inteiros de “O Livro
dos Espíritos”, evidencia o tratamento filosófico das ideias.
O que
caracteriza, por outro lado, a filosofia kardecista, se assim podemos falar, é
a sua praticidade. Marx afirmou que “os filósofos limitaram-se a interpretar o
mundo de diferentes maneiras; trata-se é de transformá-lo”, exigindo a crítica
radical, que vai às raízes e à práxis, isto é, à ação revolucionária. Essa tese
foi lançada por Marx por volta de 1845, doze anos antes de “O Livro dos
Espíritos”. Pode-se dizer que Kardec também realizou, a seu modo, uma filosofia
de ação, de pratos, transformadora e revolucionária, ao propor uma nova
reflexão sobre os fundamentos da vida, do ser e do mundo, inaugurando a visão
espírita. E, também, promoveu a elevação dos Espíritos à categoria de seres
existentes e não potenciais, ao abrir, por assim dizer, a cortina que separava
o homem vivente no plano corpóreo ao homem vivente no plano extra físico.
A
filosofia que Kardec desenvolveu foi discursiva-racional, não considerando a
intuição como uma fonte autônoma de conhecimento. Embora reconhecendo a
totalidade emocional, volitiva e cognitiva do Espírito, não poderia deixar de
cingir-se à razão como juíza do saber. Não nega a intuição como uma das formas
de apreensão da realidade. Todavia, “toda intuição tem que legitimar-se perante
o tribunal da razão”.
Embora
seguindo, sob certos aspectos, um esquema muito ligado às preocupações
teológicas, Kardec manteve-se numa linha de equilíbrio racional, definindo, por
fim, o Espiritismo como filosofia moral, com o que se libertou das amarras de
uma teologia. A reflexão sobre a reencarnação, como instrumento de
desenvolvimento das potências do Espírito, define a filosofia espírita, em
oposição à teologia.
Na
verdade, o esquema kardecista seguiu, em linhas gerais, a própria estrutura do
pensamento filosófico da época. Foi a partir do século 19 que as ciências se
libertaram definitivamente da filosofia, mudando esta seu campo de atividade e
atuação formal.
O
didatismo de Kardec não prejudica a sua obra, nem lhe descaracteriza a
fundamentação filosófica. Exprime, apenas, uma face da capacidade de
comunicação própria do autor, cujo estilo sem adjetivação excessiva, o torna
objetivo, desprendido de palavras e formulações tortuosas. Deve-se ter em mente
que o professor Rivail mostrou em sua obra — cerca de 21 volumes — um poder de
objetividade, de concisão ainda não suficientemente estudado, antecipando-se
aos progressos da linguagem atuais tanto da informática, quanto da linguística.
O fato de escrever numa linguagem direta, limpa, inova mais uma vez,
enriquecendo o conteúdo filosófico.
Se
acompanharmos o pensamento kardecista, não apenas nos livros fundamentais, mas
ao longo das edições da “Revista Espírita”, haveremos de reconhecer a posição
de Kardec como homem prático, jornalista, administrador, pesquisador, orador,
líder, polemista, escritor, o que naturalmente não lhe poupava tempo para
elucubrações excessivamente teóricas. No espaço de apenas 14 anos escreveu mais
de 20 livros, incluindo as edições da “Revista Espírita”, que redigiu sozinho e
desenvolveu uma atividade realmente exaustiva. Realizou, todavia, uma
teorização sobre os fatos, de modo que não se perdessem os resultados das
pesquisas e das observações.
Flammarion
chamou-lhe de “Bom Senso Encarnado”, mas negou-lhe o caráter de cientista.
Todavia, com o desenvolvimento das ciências humanas, já não se pode negar a
Kardec, também, esse título porque realizou, como Bozzano, embora em menor
escala, é verdade, um árduo trabalho de pesquisa, observações pessoais e coleta
de dados. Com todo esse material, deduziu um conjunto de ideias e fundamentos.
Foi filósofo do real, da ação, da prática, apoiando-se em dados experimentais.
Deduziu sobre os fundamentos morais do universo — refletindo sobre a natureza
do homem, suas dimensões físico-espirituais, o processo evolutivo a que está
submetido, sua imortalidade e seu destino. Especulou sobre o absoluto, Deus,
como centro de interesse e equilíbrio do Universo.
Mesmo nos
livros que numa falsa visão cultural são chamados de “religiosos”, manteve essa
postura filosófica. Tanto no “Evangelho Segundo o Espiritismo”, como no “O Céu
e o Inferno”, que abordam temas da teologia, comportou-se de maneira coerente
com sua visão filosófica e é sob este ângulo que examina, tanto a contribuição
de Jesus de Nazaré, que libera dos aspectos místicos, para concentrar-se no
conteúdo moral de seu ensino, quanto os aspectos da Justiça Divina, em “O Céu e
o Inferno”.
Se Allan
Kardec estruturou a Doutrina Espírita como uma filosofia moral, porque, contraditoriamente,
adotou o tema “Fé raciocinada”? Se, como ele repetidas vezes afirmou, o
Espiritismo é uma doutrina positiva, repudiando todo o misticismo, qual o
motivo que o teria levado a mencionar a fé como uma condição importante para o
homem?
Mostramos
que a estrutura filosófica do Espiritismo é discursiva-racional e que abrange
tanto uma concepção do ser, como uma concepção do universo e, mais ainda,
projeta-se como uma práxis, atuando no mundo para modificá-lo. Trata-se como se
vê, de tentativa para sintetizar a angústia humana, convergindo,
inevitavelmente, para o campo moral. Ora, as religiões sempre se colocaram como
guardiãs da moralidade, embora, quase sempre, decaindo para um moralismo.
Kardec não podia negligenciar o fato de que a moralidade é a meta principal do
Espiritismo — embora enfocada sob uma visão libertadora. Daí o ter afirmado que
o Espiritismo é forte por tocar os pontos principais das religiões: Deus, o
espírito e as penas futuras. Chegou mesmo a tentar colocar o Espiritismo como o
elo, a aliança entre a ciência e a religião.
E aí se situa a sabedoria da proposta espírita. Não é uma postura inflexível porque é progressiva e isso lhe garante a mobilidade, abrindo-se para compreender as múltiplas formas de expressão do Espírito em sua caminhada evolutiva. E, nessa caminhada, a religião tem sido um fator marcante, embora nem sempre positivo, ao contrário, o que levou Kardec a lamentar que “infelizmente as religiões hão sido sempre instrumentos de dominação” (“A Gênese”, cap. I, item 8).
E aí se situa a sabedoria da proposta espírita. Não é uma postura inflexível porque é progressiva e isso lhe garante a mobilidade, abrindo-se para compreender as múltiplas formas de expressão do Espírito em sua caminhada evolutiva. E, nessa caminhada, a religião tem sido um fator marcante, embora nem sempre positivo, ao contrário, o que levou Kardec a lamentar que “infelizmente as religiões hão sido sempre instrumentos de dominação” (“A Gênese”, cap. I, item 8).
No
domínio da fé, temos uma atitude específica do Espírito. Ela é intuitiva, é a
apreensão da totalidade, a germinação da certeza interna, surgida da vivência,
dos valores. David Hume, filósofo inglês, definiu-a dessa forma: “a fé é muito
mais um ato da parte afetiva de nossa natureza do que de sua parte pensante”.
Ao
postular a “fé raciocinada”, Kardec inseria
um paradoxo, considerando as bases da filosofia espírita, chamando-nos à
reflexão. Definindo essa contradição, Kardec afirma: “fé inabalável só o é a
que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da humanidade” (“O
Evangelho Segundo o Espiritismo”, tradução de Guillon Ribeiro - FEB). Quer
dizer, ele afirma que a inabalavidade da fé depende da razão, ou seja, que a
apreensão intuitiva da totalidade, como uma certeza interna, pode ser falsa,
incorrer em erro de interpretação, se não passar pelo crivo da razão. Dessa
atitude surge uma nova fé que seria motivadora, totalizadora, porque submetida
ao juízo racional.
Dentro dessa perspectiva, o Espiritismo se propõe a aliar a ciência e a religião, mas, todavia, não se reduz nem a uma nem a outra, mas transcende-as. Dialeticamente, aceitando a ciência e a religião como posições reais no conhecimento e vivência humanas, o Espiritismo procura transformá-las. De um lado, sendo ciência do Espírito, completa a ciência convencional cujo objeto é o conhecimento do meio físico como o único concreto e possível. De outro, destruindo o sobrenatural em que a religião se assenta, liberta o homem de um conceito estreito e falacioso da vida, propondo-se como filosofia moral, onde os conceitos morais coexistem com a racionalidade e desataviados dos prejuízos do culto.
Dentro dessa perspectiva, o Espiritismo se propõe a aliar a ciência e a religião, mas, todavia, não se reduz nem a uma nem a outra, mas transcende-as. Dialeticamente, aceitando a ciência e a religião como posições reais no conhecimento e vivência humanas, o Espiritismo procura transformá-las. De um lado, sendo ciência do Espírito, completa a ciência convencional cujo objeto é o conhecimento do meio físico como o único concreto e possível. De outro, destruindo o sobrenatural em que a religião se assenta, liberta o homem de um conceito estreito e falacioso da vida, propondo-se como filosofia moral, onde os conceitos morais coexistem com a racionalidade e desataviados dos prejuízos do culto.
Kardec
rejeitou o fato de que o homem crer em Deus e orar se caracterizasse como um ato
místico. Ao contrário, afirmou ser uma atitude positiva, decorrente da abertura
que o Espiritismo, filosoficamente, promove. Logo, a fé que Kardec aborda é,
sobretudo, saber, crença baseada na razão. E se estrutura como uma nova postura
do homem perante a vida, pois que não nega o impulso da experiência interna na
apreensão da totalidade, mas indica o caminho da crítica e da atividade
construtiva, para que a fé não continue sendo contemplação e alienação
místicas.
Sendo o
Espiritismo uma nova visão do homem e do mundo, caracteriza-se como um pensar
filosófico, como uma filosofia estruturada na pesquisa do conhecimento, do ser
e do universo. Tendo base experimental, seu filosofar é existencial, atua no
mundo para modificá-lo. O pensamento kardecista — isto é, espírita —
apresenta-se como um sistema de ideias claramente definido e eficientemente
deduzido. Essa afirmativa nos leva à conclusão de que o professor Hipollyte
Léon Denizard Rivail — Allan Kardec — pode ser conceituado como um autêntico
filósofo, na lídima acepção do termo.
Observação: No tocante às definições de filosofia, usamos expressões do livro “Teoria do Conhecimento”, do professor Johannes Hessen, 3a edição - Armênio Amado Editor, Coimbra - Portugal.
Fonte: revista “A Reencarnação”, n º 401 - Ano L - outubro de 1984, órgão de divulgação da Federação Espírita do Rio Grande do Sul.
Jaci Regis (1932-2010), psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi o fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”, “Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.
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