Por Deolindo Amorim
A
seara espírita é um campo de experiências. Seria ilusão esperar que todos
quantos se engajam no trabalho espírita, nesta ou naquela faixa, por mais
ardoroso que seja o desejo de servir, já estejam completamente desligados de
uns tantos hábitos, contraídos nos ambientes de onde vieram. Não. As tendências
religiosas de origem, os cacoetes adquiridos na profissão ou na vida social e
os impulsos do próprio temperamento não se modificam de um momento para outro.
O fato, portanto, de ingressarmos nas fileiras espíritas, seja pela dor, seja
pela reflexão profunda ou por outro motivo, não significa que tenhamos deixado
lá fora todas as propensões ou, afinal, toda a bagagem que nos acompanha. Não
se diz a toda hora, e é certo, que o meio espírita é uma escola? Escola
pressupõe aprendizado e melhoramento.
Como
a Doutrina Espírita recebe adesões de pessoas oriundas de todas as classes
sociais, assim como de todas as correntes religiosas e de todos os níveis da
escala humana, as frentes de trabalho no movimento espírita, quer no campo
assistencial, quer no campo doutrinário, mediúnico etc., reúnem elementos muito
variados entre si, com temperamentos, concepções e costumes em tudo e por tudo
diferentes. É natural, até certo ponto, que haja alguns problemas por falta de
entrosamento. Todos, afinal, querem trabalhar e todos são necessários à
realização da obra comum. Mas nem todos sempre se identificam nas ideias, nos
modos de conduzir as tarefas e assim por diante. Todos — é bom frisar — desejam
contribuir com sua parcela de esforço. E todos devem ter oportunidades de
prestar serviço.
O
problema não está propriamente no fato de haver desigualdades individuais por
causa da formação, estrutura psicológica, educação, cultura etc., mas na falta,
às vezes, de tato para contornar as dificuldades entre grupos heterogêneos e
aproveitar bem o que cada qual possa dar de si a despeito das divergências ou
até mesmo de atritos passageiros.
Nos
grupos mais reduzidos, como é o caso de uma diretoria de cinco ou seis pessoas,
muitas e muitas vezes há incompatibilidades temperamentais e desentendimentos
ocasionais, pois, como ensina a sabedoria popular, cada cabeça, cada sentença!
Homogeneidade
absoluta não é mesmo possível com um material humano ainda em processo
reencarnatório de melhoramento. Mas, é com esse material humano, sujeito aos
altos e baixos da experiência terrena, que se realizam as grandes obras. Se o
nosso movimento tivesse de esperar que aparecessem somente trabalhadores já
depurados de seus velhos compromissos ou sem arestas contundentes, nada teria
sido feito até agora.
Há
pessoas, no entanto, que ainda não compreendem a nossa situação e, por isso, de
quando em quando fazem esta pergunta: – Mas, existem dessas coisas no meio
espírita? E por que não? O meio espírita não é uma comunidade de anjos, mas de
gente de carne e osso, com os seus defeitos e suas qualidades. É verdade que
certos casos já não deviam ocorrer em nosso meio. São casos realmente
discrepantes, de projeção, campanhas anônimas etc. etc. Isso prova que ainda
existe muita fraqueza humana do lado de cá, tanto quanto em outras atividades
humanas.
Não
esperemos, pois, que haja um ajustamento perfeito em todos os campos de
trabalho espírita, já que as criaturas humanas são mesmo desiguais. Entretanto,
pela experiência já vivida e pelo que já se aprendeu na Doutrina até agora,
certas dificuldades, causadas pela incompreensão humana, já não deveriam
ocorrer entre nós. Afinal, ninguém é perfeito, ninguém chega à seara espírita
sem influências do passado, sem alguns prejuízos da educação ou do ambiente de
origem. Mas a casa espírita é uma escola. Sim, escola onde cada qual deve se
esforçar para melhorar.
Afinal
de contas, o que estamos fazendo no meio espírita se ainda estamos presos às
mesmas paixões ou se ainda estamos presos às mesmas tendências negativas de
outrora? Se ao cabo de tudo, nada mudou em nossa vida, pois continuamos com as
mesmas ideias, os mesmos sentimentos, os mesmos hábitos, evidentemente não
incorporamos bem os princípios espíritas ao dinamismo de nossa vivência
cotidiana. É assunto para reflexões mais sérias.
Fonte: “Ponderações Doutrinárias”, coletânea de artigos publicada pela Federação Espírita do Paraná (FEP).
Deolindo Amorim nasceu na Bahia em 1906 e desencarnou no Rio de Janeiro, em 1984. É considerado, ao lado de Carlos Imbassahy e Herculano Pires, um dos maiores pensadores espíritas das Américas. De estilo professoral, extremamente didático e elegante, Deolindo foi um dos maiores divulgadores do espiritismo como cultura e voltado para a análise de questões da atualidade. Fundou o Instituto de Cultura Espírita do Brasil (Iceb), foi um dos idealizadores da Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas (Abrajee) e graças ao seu empenho, em conjunto com a Liga Espírita do Brasil, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1949, o II Congresso Espírita Pan-Americano.
Obras: Espiritismo e Criminologia; O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas; Africanismo e Espiritismo; O Espiritismo e os Problemas Humanos; Ideias e Reminiscências Espíritas; Allan Kardec, o Homem e o Meio, dentre outras.
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