Por Chrysanto de Brito
Allan
Kardec, escrevendo em 1866 na “Revue Spirite”, que dirigia, meramente urna
noticia bibliográfica sobre a obra mediúnica de J.B. Roustaing, intitulada “Os Quatro
Evangelhos” (Les Quatre Evangéles, Paris, 1866), não poderia imaginar o
alvoroço que suas observações iriam provocar entre os espiritas, ao ponto de
criarem para o Espiritismo urna grave questão, que ainda perdura e que trouxe
incontestavelmente uma cisão entre eles.
As discussões sobre ela foram em França e são aqui sempre tão acerbas, que já fizeram dela um foco de malquerenças. Era uma situação que convinha acabar definitivamente. Os espíritas deviam procurar manter-se sempre em condições tais que não se afastassem dos preceitos da moral que rege o próprio Espiritismo.
Sabe-se que a questão Roustaing gira em torno de uma opinião de Allan Kardec sobre afirmativas de Roustaing a respeito da natureza do corpo de Jesus. É preciso dizer que Allan Kardec não condenou totalmente a obra de Roustaing. Ele achava que ao lado das coisas duvidosas que continha, existia nela coisas boas e verdadeiras; que era um trabalho que tinha o mérito de não estar em contradição com os princípios de “O Livro dos Espíritos” e de “O Livro dos Médiuns”. O que não estava de acordo era a aplicação que Roustaing fazia desses princípios à interpretação de certos fatos. Assim, por exemplo, ele dava ao Cristo em vez dum corpo carnal um corpo fluídico concretizado com todas as aparências da materialização. Jesus não seria, durante toda a vida, senão uma aparição tangível, um agênere. Seu nascimento, sua morte e todos os atos materiais de sua vida teriam sido apenas aparências.
Ainda que Allan Kardec não visse nisso um fato impossível, para quem conhecesse as propriedades do fluido perispiritual, ele não pronunciava sobre ele nem pró nem contra. Ele alegava que era, pelo menos, um fato hipotético, que tinha sido mesmo inoportuno aventá-lo, que a aceitá-lo ele só poderia valer por uma opinião individual, sem fazer parte integrante da doutrina espírita, desde que não tivesse a sanção do controle universal dos Espíritos. Eis principalmente o que encerrava a nota bibliográfica de Allan Kardec. Ele não censurou, não injuriou. Expediu a sua opinião fraternalmente.
Roustaing era natural procurasse responder a Allan Kardec. Não se sabe, porém, ao certo, se a resposta foi publicada. Seus discípulos muito tempo depois afirmaram que ele não conseguiu publicá-la. Allan Kardec não consta tivesse voltado à questão senão em 1868, quando deu à estampa “A Gênese” segundo o Espiritismo, discutindo-o objetivamente.
A questão Roustaing está hoje liquidada em França. Tendo sido criada e debatida pelos discípulos franceses de Roustaing, dela ficaram vestígios um pouco desonrosos para o Espiritismo. De fato, eles vêm mostrar os inconvenientes e os excessos a que chegaram os promotores da questão. É desses vestígios que pretendo falar aqui. O que quero fazer é antes expor os meios empregados pelos discípulos de Roustaing para apresentarem suas ideias, que propriamente discutir a questão em si. São principalmente suas origens que procuro mostrar aqui. É necessário asseverar que não tenho em mira, fazer reviver essa questão ainda tão irritante, procurando provocar discussões, nem mesmo julgo seja sua resolução indispensável ao nosso progresso espiritual. Penso com Allan Kardec que essa questão surgiu inoportunamente. Mas, já que isso se deu, pode-se continuar a falar sobre ela, sem que se possa dizer que isso importa em provocação. No interesse da verdade tudo se pode alegar, contanto que tudo se alegue serenamente e com probidade.
QUESTÃO DE HONRA
Foi principalmente depois da morte de Roustaing, estando, portanto, já Allan Kardec desencarnado, que a questão tomou vulto. Seus discípulos não puderam suportar que Allan Kardec não tivesse a mesma opinião que seu mestre. Viram nas suas observações propósitos que não estavam na sua intenção. A questão da natureza do corpo de Jesus apareceu então como uma questão de honra.
Foi dado a lume em 1882 uma brochura contendo uma memória intitulada “Os Quatro Evangelhos de J.B. Roustaing. Resposta a Seus Críticos e a Seus Adversários”. (Les Quatre Evangiles de J.B. Roustaing. Réponse à Ses Critiques el à Ses Adversaires. Bordéus, 1882), onde se procurava defender Roustaing de pretendidas injustiças de Allan Kardec e onde se dizia, ao mesmo tempo, que a memória, tal qual era publicada, tinha sido escrita em 1866 e legada em manuscrito pelo próprio Roustaing, a fim de ser publicada após sua morte, memória essa, entretanto, que não passa de um arranjo de seus discípulos, que não é integralmente da autoria de Roustaing.
Não é que nessa memória não se veja certa resposta dada pelo autor d'Os Quatro Evangelhos a Allan Kardec, mas não se deixa de ver também, com um exame detido, que ela está enxertada e tem apêndices. Segundo me informaram mediunicamente a resposta de Roustaing foi clara; não tinha as acomodações que foram feitas pelos seus discípulos. Assim, pretendendo prejudicar a honorabilidade de Allan Kardec, os discípulos de Roustaing atribuíram também a este, sentimentos que não abrigou. Não havia em Allan Kardec nenhuma má vontade com Roustaing, assim Roustaing não lhe votava encarniçada inimizade. A brochura de 1882 teve o grande prejuízo de excitar extremamente os ânimos dos espíritas em França, dando lugar a uma forte e dura polêmica entre eles.
Vai-se ver agora, embora ligeiramente, em que consistiu a defesa de Roustaing nessa brochura. Há, sobretudo, quatro temas em que ela se apoia. São a negativa da concordância universal como método de controle do Espiritismo, admitido por Allan Kardec, a apresentação de Roustaing como missionário de uma “fase teológica” no Espiritismo, a fenomenologia espírita, principalmente as materializações, como meio de prova na questão da natureza do corpo de Jesus e a acusação contra a aplicação da tese do Docetismo à mesma questão. Há outros pontos secundários que foram tratados pelos discípulos de Roustaing, que nada têm com a questão, mas que foram analisados por eles para terem, parece, a oportunidade de censurar Allan Kardec.
“Para falarmos afirmativamente nas questões, disse Allan Kardec na nota bibliográfica de 1866, e estarmos de acordo com a maioria, recolhemos documentos bastante numerosos nos ensinos dados de todos os lados pelos Espíritos. Assim temos procedido todas as vezes que se trata de formular um princípio capital. Nosso critério, para as coisas que não podemos controlar pelos nossos próprios olhos, está na concordância universal corroborada por uma rigorosa lógica”. Já anteriormente, em 1864, na introdução da “Imitação do Evangelho segundo Espiritismo”, ele tinha definido esse critério e ainda mais nas edições posteriores da mesma obra, que se sucederam com o título apenas de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”.
“A garantia séria do ensino dos Espíritos está na concordância que existe entre as revelações feitas espontaneamente por intermédio de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em diversas regiões”.
Era esse justamente o critério que Allan Kardec tinha adotado, como se sabe, para formar os princípios do Espiritismo, para preparar “O Livro dos Espíritos” e “O Livro dos Médiuns”. Eis porque julgava que no caso de ser admitida a tese da natureza do corpo de Jesus, como o queria Roustaing, a ela devia ser aplicada a sanção da concordância universal dos Espíritos. Agora, onde está a prepotência, o monopólio da verdade, a pretensão a infalibilidade, o sectarismo de Allan Kardec nessa afirmativa, como insinuaram os discípulos de Roustaing?
O consensus omnium, isto é, o acordo de todos os homens sobre certas proposições não é, em lógica, um critério considerado como prova da verdade? Por que não aplicá-lo também ao Espiritismo, como fez Allan Kardec? Se não se pode dizer que seja um critério infalível, pelo menos é lógico e que Allan Kardec tinha demais a experiência.
CRITÉRIO DE AUTORIDADE
Roustaing e seus discípulos insurgindo-se contra ele mostraram que se baseavam em Espiritismo, exclusivamente, no critério de autoridade. Mas não é também critério falível, mais falível ainda que o da concordância ou consentimento universal? Não é preciso discuti-lo aqui. Roustaing firmou-se demasiadamente na autoridade dos nomes que apareceram nas mensagens desde o começo da obra, que podiam não ser dos próprios evangelistas, pelo menos os nomes que revelaram a parte referente à natureza do corpo de Jesus. Devia ter havido um controle particular, devendo a identificação ser feita com interesse e cuidado, assim como o exame das condições práticas determinadas.
Não seria melhor que tivesse havido também o controle universal, de que falava Kardec, como outros elementos de prova? A esse controle se opunha talvez em sua excessiva boa fé, sua grande credulidade e ainda mais suas ideias preconcebidas sobre a necessidade de ser aclarada a questão do corpo de Jesus, quando a verdade é que não tinha chegado ainda o momento para isso, conforme dizem certos Espíritos.
Outro erro dos discípulos de Roustaing foi quererem fazer dele, por influência de Pezzani, sem que este tenha talvez concorrido, de uma “fase teológica” que sua obra viria a abrir. A. Pezzani, publicando em 1865, conforme se vê da própria brochura em 1882, um ano antes de ser dada à luz a obra de Roustaing, um livro intitulado “Les Bardes Druidiques, Synthèsé Philosophique du Dixneuvième Siécle” e referindo-se ao Espiritismo, emitiu opinião de que ele tem três fases distintas: a fase material, a fase espiritual e a fase teológica. Dizendo ainda que a fase material terminava com a moral, a espiritual com a síntese filosófica, ele afirmava que a fase teológica terminaria com a fusão de todos os cultos e com a “constituição do universalismo em religião”, o que é admissível por evolução e não repentinamente por intermédio de uma obra e muito menos de uma obra de comentários. Entretanto, Roustaing entendia, com seus discípulos, que “Os Quatro Evangelhos” começavam essa fase, porque a fase espiritual tinha sido terminada pelo próprio Pezzani e a fase material já tinha sido também fechada por Allan Kardec com “O Livro dos Es¬píritos” e “O Livro dos Médiuns”, o que quer dizer que Allan Kardec fora o missionário apenas para esses dois livros. Não é preciso mostrar aqui o erro da concepção de Pezzani, nem a inanidade de Roustaing.
Tratando da fenomenologia espiritual a propósito da natureza do corpo espiritual de Jesus, os discípulos de Roustaing disseram que Allan Kardec não gostava das manifestações físicas, e que “seus adeptos aprenderam com ela a lhes ter um santo horror”. É uma imputação inteiramente aérea. Não se encontra na sua obra nada que prove isso. Ao contrário, ele falou delas largamente n’O Livro dos Médiuns e na Gênese segundo o Espiritismo.
Fazendo, por exemplo, o estudo das aparições tangíveis ou materializações, ele traçou uma teoria que ainda está de acordo com os fatos, falando também daqueles que se davam por intermédio de médiuns poderosos como Home, que depois foi estudado por Crookes. Seu fim não foi alongar-se no estudo dos fenômenos físicos nem dos fenômenos intelectuais, mas estabelecer os fundamentos de uma doutrina que ficasse experimentalmente baseada sobre eles.
Já se vê que ele estudou desses fenômenos o que era suficiente para chegar aos seus fins, ficando, destarte, conhecendo e aceitando todos eles. Por aceitar mesmo os fenômenos físicos e conhecê-los, foi que Allan Kardec pôde dizer que admitindo-se Jesus com um corpo nas condições em que o queria Roustaing, era dar lugar a compará-lo com uma aparição tangível, um agênere, como chamava. Não fez o que fizeram os discípulos de Roustaing sofisticamente, isto é, tomaram essas próprias aparições tangíveis ou materializadas, principalmente as de Crookes, como prova de que Jesus podia manter-se com um corpo nas condições que alegavam.
Era certamente desconhecer-se o caráter dessas materializações, o meio em que se formam, as condições especiais de investigações em que se dão. Daí é absurdo dizerem os discípulos de Roustaing que as revelações sobre a natureza do corpo de Jesus estão de acordo com a ciência moderna.
ALTERAÇÃO FRAUDULENTA
Allan Kardec, adotando a mesma opinião que teve Pezzani, julgou que a concepção do Docetismo podia ser comparada com a que teve Roustaing sobre o corpo de Jesus. O Docetismo foi uma heresia dos primeiros séculos da igreja, que ensinou justamente o que prega Roustaing, isto é, que toda a vida material de Jesus, seu nascimento e sua morte não foram senão aparentes. Não era dizendo que o Docetismo é um erro, que Roustaing o conhecia ou que Allan Kardec o desconhecia, que os discípulos de Roustaing podiam negar a veracidade da comparação.
Mas não foi somente a publicação da brochura em 1882 que veio agravar a questão Roustaing, foi a alteração fraudulenta que fizeram os discípulos de Roustaing da edição d'Os Quatro Evangelhos. O prefácio e a introdução, contendo ao todo 108 páginas foram extraídos do primeiro volume da obra, para serem substituídos em muitos exemplares da mesma obra por outro prefácio e mais quatro partes da brochura, no total de 88 páginas. Este prefácio não é inteiramente novo, é o prefácio do volume que se pode chamar de autêntico, reproduzido com omissões e emendas contendo, além disso, pequenas interpolações. Assim, sem que tenha havido uma nova edição, existem da mesma obra exemplares com prefácios diferentes.
Para provar a fraude não é preciso mais que examinar o frontispício do primeiro volume, vendo-se a data de sua publicação, 1866, e depois vendo-se no fim das transcrições das partes tiradas da brochura, uma página antes de começar os comentários evangélicos, uma nota dizendo abertamente que elas tinham sido extraídas da brochura publicada em 1882, Como pode um livro publicado em 1866 conter fatos que se passaram em 1882? Além do papel e dos tipos de letras diferentes há ainda a errata que ficou no livro alterado e que não combina absolutamente com as páginas substituídas. Eis até onde chegaram as origens da questão Roustaing.
No Brasil, essa obra, assim alterada, passou como uma segunda edição e foi traduzida, quando se sabe que dela nunca foi tirada nova edição. Teria sido melhor fosse conservada a edição brasileira que fora feita, há alguns anos, da obra autêntica de Roustaing, tradução embora feita com menos elegância que a outra mais recente. Pelo menos ela não contém os males da obra adulterada.
Fonte: Mensário espírita “Opinião E.”, abril de 1995, ano I, nº 6 – Capivari-SP; editor e jornalista responsável: Wilson Garcia. Os intertítulos foram acrescentados para facilitar a leitura. A “Revista Espírita do Brasil”, que publicou inicialmente este artigo em 1936, era o órgão de divulgação da Liga Espírita do Brasil. (Nota do PENSE).
Chrysanto de Brito foi um antigo militante espírita, funcionário do Governo. De origem cearense, radicado no Rio de Janeiro, desencarnou sem deixar filhos. Era recluso, avesso aos auditórios espíritas e pouco participou do movimento espírita do início do século 20. Profundo conhecedor do Espiritismo, escreveu o livro “Allan Kardec e o Espiritismo”, lançado em 1935, reeditado em 1983, com edição digital pelo PENSE em abril de 2010.
Fonte: http://viasantos.com/pense/arquivo/1366.html
Muito bem, é o problema de sempre, opinião pessoal, previsto por Kardec...por isso a necessidade de metodologia, concordância universal etc....com esses procedimentos, digamos, por comparação, "profissionais" não se teria motivo pra desavenças.
ResponderExcluir