Por Humberto Schubert Coelho
Da
compreensão geral de que o Espiritismo é ou tem uma filosofia surge a
necessidade de explicitá-la. Os seus adeptos reproduzem com acerto os seus
aspectos filosóficos, e os separam com habilidade adquirida pelos estudos
kardequianos daqueles outros científicos e religiosos. E também o caráter
filosófico de uma doutrina qualquer é sempre mais discernível e menos
controverso do que um seu possível elemento científico. Estas são razões pelas
quais se fala numa filosofia espírita com alguma segurança.
Entretanto,
a academia possui no que tange à filosofia não menos exigências e regras do que
as que competem à prática das ciências. Afinal, então, o que é e como se
sustenta a filosofia espírita? Tentaremos mais problematizar do que responder a
este questionamento.
Do
ponto de vista da filosofia como especialidade, o Espiritismo apresenta-se como
filosofia popular, o que equivale a dizer, como razão argumentativa, mas não
fundamentadora. Esta qualificação não precisa ser pejorativa, e mesmo algumas
das melhores filosofias tiveram um cunho acentuadamente popular, como em
Voltaire, Rousseau e Nietzsche. É também uma visão filosófica válida e oficial
a de que a razão já está desde sempre em jogo com seus problemas específicos, e
não pode ou não requer fundamentação. Ainda assim, a maior parte do que se
produziu sob o título de filosofia na história humana destinava-se à
fundamentação do conhecimento.
São
mentes analíticas e interessadas na fundamentação das certezas a de Platão, a de
Descartes, a Locke e a de Kant, alguns, portanto, dos maiores filósofos.
Segundo estes a atividade filosófica não se faz propriamente sem o esforço
exaustivo de sua própria crítica, de modo que qualquer filosofia digna do nome
ou vai até as últimas consequências ou compra um método que já o tenha feito.
Os bons filósofos populares o são por seu interesse prático (moral ou
político), sem que dispensem o concurso de uma boa base metodológica. E se
Kardec foi um bom filósofo popular, o que acreditamos razoável afirmar, devemos
encontrar em sua prática os princípios de algum ou alguns filósofos mais
analíticos, para não dizer sistemáticos (nome que à época não soava bem).
O
primeiro indício de que Kardec não é um filósofo sistemático está em ele lançar
mão de múltiplos conceitos e axiomas sem os justificar. Esta atitude pode
significar, como dito, tanto o descompromisso com a filosofia quanto uma adoção
prévia de métodos filosóficos bem estabelecidos. E não há a mais remota dúvida
de que os conceitos e axiomas pressupostos por Kardec correspondem à visão
eclética do saber filosófico de princípios do século XIX. Em primeiro lugar
porque todos estes pressupostos pertencem à ala ortodoxa da filosofia francesa,
requerendo assim pouca ou nenhuma exposição sistemática; em segundo lugar
porque estas conquistas em especial eram classificadas como conquistas da
ilustração e todos os autores da época estavam habituados a assumir os
elementos deste grande edifício eclético e enciclopédico como ponto de partida.
Pensadores tão importantes como Benjamin Constant, Madame de Staël e
Tocqueville jamais se preocupam, assim como Kardec, em fundamentar o conceito
de razão, ou analisar a constituição metafísica da liberdade. Ao invés disto
eles os tomam do poço da filosofia iluminista e os aplicam com habilidade de
filósofos práticos aos seus interesses.
Para
elencar alguns dos pressupostos essenciais da classe ilustrada francesa e/ou
européia dos anos 1800 a 1840 podemos citar resumidamente:
I)
A fundamentação do pensamento por Descartes, com a respectiva
separação entre o princípio pensante do princípio material, a constituírem os
modos de ser.
II)
A ideia platônica de que a matemática corresponderia ao modus operandi da natureza. Noção
renascentista que foi solidificada por Galileu, Bruno e Descartes.
III)
O atomismo de Diderot, que copiando Demócrito e Epicuro postulou
todas as leis da física como consequências das leis que regem as partículas
elementares.
IV)
A noção de liberdade como direito garantido por Deus, uma ideia
cristã que se desenvolveu em séculos de teologia e filosofia, casando-se com as
noções gregas de liberdade e culminando no axioma da liberdade humana conforme
Locke, Voltaire e Rousseau.
V)
A positividade da experiência como fundamento do saber,
desenvolvida por Comte e imediatamente diversificada e adaptada por inúmeros
pensadores e cientistas.
Poderíamos
citar outros pontos, mas isto só aumentaria o volume de uma defesa que
consideramos suficientemente estabelecida.
Está
claro ao filósofo contemporâneo que a segurança de algumas destas
pressuposições foi duramente abalada, durante o próprio século XIX e
especialmente no XX. O item mais controverso hoje é o da equivalência entre
matemática e natureza, ainda defendida com certa ingenuidade por muitos físicos
e francamente proibida pela filosofia da ciência. O que se pode dizer hoje com
sobriedade filosófica é que haja alguma
correspondência entre as leis que postulamos matematicamente e o
funcionamento da natureza, mas precisar a exatidão desta correspondência seria
considerado uma postura dogmática.
Basta,
contudo, o conhecimento do contexto histórico para lembrar que a nova filosofia
responsável por questionar as certezas iluministas é de matriz alemã, e não
estava plenamente acessível aos franceses da primeira metade do século XIX.
Apesar de estar entre
os poucos falantes de alemão da sociedade francesa da época, Allan Kardec
provavelmente compartilhava da crença geral de seu povo a respeito dos
germanos: a de se tratarem de um povo grosseiro recém chegado às raias da
civilidade e que ensaiava suas forças intelectuais numa filosofia prolixa, mas
essencialmente infrutífera.
O
posterior sucesso da filosofia alemã com todo o seu aparato crítico, a
restauração da metafísica pelo Idealismo e as reviravoltas teológicas marcou para
sempre a face da filosofia, um fenômeno que a vaidade francesa ainda digere com
atraso.
A
filosofia sistemática viu sua tocha ser cedida da França para a Alemanha, e
desta para o mundo globalizado do pós-guerra. Resta saber em que medida isto
depõe contra as filosofias práticas e populares.
Neste
particular uma comparação entre Kardec e os outros filósofos populares
franceses é indispensável. A maioria deles, exatamente por ser popular, sofreu
minimamente com a transformação da filosofia sistemática, e a popularidade dos
pensadores políticos e religiosos, dos psicólogos e moralistas franceses
continuou tão irretorquível sob a luz dos sistemas alemães como quando em seu
terreno natural do Iluminismo autóctone.
Redefinidos
os fundamentos dos conceitos de razão e liberdade, sobre bases mais críticas e
rigorosas, continuaram a viger na esfera prática as conclusões e intuições
sóbrias que a análise social e psicológica francesa ou inglesa havia efetuado
em dois ricos séculos de modernidade.
A
filosofia atual se esforça por refinar a fundamentação metafísica e
epistemológica da razão, de Deus, da liberdade e da relação entre sujeito e
objeto, etc., mas no campo prático e popular a maioria dos postulados
iluministas continua a viger como moeda válida de interpretação dos fenômenos
naturais e sociais. Em muitos aspectos, mudaram os caminhos, mas permaneceram
os resultados da filosofia. É bem mais ingênuo ver algo de “errado” em Platão,
por incompatibilidade de seus métodos com os recentes, do que dispensar os
métodos recentes na apreciação de trabalhos filosóficos pregressos; e a
história da filosofia continua a ser fonte de inspiração principal para os que
pretendem reelaborá-la com vistas ao futuro.
Qual
é, então, a base filosófica do Espiritismo, se o ecletismo espiritualista
francês e o positivismo que o constituíram estão agora em cheque? Precisamente
a mesma base que continuou a sustentar as outras filosofias práticas e
populares após a substituição da Ilustração francesa, seu ecletismo e
positivismo, pela filosofia crítica alemã.
Procurai
então os defensores de Pascal, Voltaire, Rousseau, Staël e Tocqueville, e
achareis o caminho para sustentar em linguagem atualizada aqueles mesmos
pressupostos que fomentam o método kardequiano. E os caminhos para esta revisão
técnica da filosofia espírita podem ser muitos, como muitas são as correntes
mais recentes. O pragmatismo de James, a filosofia liberal e crítica de Popper
e mesmo uma forma revisada da analítica existencial de Heidegger, como foi
intentado por Herculano Pires, podem ser boas soluções.
Particularmente acho que a forma mais apropriada seja a da Metafísica da Subjetividade, uma
variante eclética que se apropria de praticamente todas as outras correntes
contemporâneas numa forma ao mesmo tempo clássica e crítica da metafísica,
permitindo a validade dos conceitos-chave de Deus, imortalidade, razão e
liberdade.
·
O autor é professor e escritor com formação em filosofia e
religião, tendo por interesses principais a teologia, história, religião
comparada, metafísica e ética.
Fonte: http://filosofiaespiritismo.blogspot.com.br/
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